Descontadas as fragilidades patentes de A ilha, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1963 – uma história meio mal-ajambrada de um grupo de sibaritas que se mete a ir atrás de supostos tesouros perdidos em Ilhabela –, temos ali a grande presença de Luigi Picchi, o primeiro ator propriamente khouriano (trabalhou em Estranho encontro, 1958, Fronteiras do inferno, 1959, Na garganta do diabo, 1960, A ilha, 1963, O último êxtase, 1973). Luigi Picchi, aliás, poderia ter protagonizado um notável filme de vampiro, algo que o cinema brasileiro, infelizmente, não chegou a fazer – physique du rôle para isso ele tinha de sobra (fisicamente ele era uma mistura de Carlos Zara, Doca Street e do ex-presidente Michel Temer).Picchi, suas obsessões, sua ganância, sua vilania assumida, é um daqueles tipos humanos dotados de tamanha força centrípeta que não tem como não fazer o mundo orbitar em torno de si. Todos seus atos são uma demonstração de máximas como o homem é o lobo do homem – ele faz, por exemplo, uns meninos que o ajudaram a transportar coisas para o barco (que vai ser usado na busca pelo tal tesouro) disputarem a tapas o dinheiro dado de caixinha, obrigado, arremessando a nota ao mar, “a competição é sempre benéfica”, diz ele. Trata os empregados na base de insultos e bofetões. Não hesita em descarregar seu revólver contra um gato que se aproxima do aquário onde estão seus peixes betta splendens (raça conhecida, aliás, por sua agressividade). Como está chegando o momento de os peixes acasalarem e ele espera conseguir uma coloração inédita na cria, Picchi leva o aquário-trambolho consigo, no barco.
O grupo de sibaritas chega à ilha onde supostamente há o tesouro escondido. Arma ali suas barracas e se entrega à esbórnia (bebedeiras, etc.). Picchi, contudo, mantém-se aprumado, estudando mapas e planejando incursões pela ilha. A caça ao tesouro, contudo, quando posta em prática, vai parecendo cada vez mais uma empreitada fantasiosa. Conflitos emergem. Um dos sibaritas, Mario Benvenutti, morre afogado ao buscar o tesouro por conta própria. O barco desaparece, com todos suprimentos e água potável de que o grupo dispunha. Uma das convivas adoece ao ingerir a água salobra disponível na ilha. Alguém sugere que bebam a água do aquário. Picchi cede meio copo à moça que adoeceu, e só. Se for pra alguém morrer, que morram as pessoas e vivam seus peixes.
A imagem de um aquário plantado no meio de uma praia está entre as mais inspiradas já concebidas por Walter Hugo Khouri. Tem algo das desconcertantes concepções visuais de René Magritte, além de uma grande força simbólica – o mar interminável contrastando com o espaço exíguo onde dois peixes betta buscam-se, cada qual aprisionado em seu compartimento. Metáfora da condição humana? Não é difícil se chegar a uma conclusão como essa. Khouri frequentemente usou em seus filmes símbolos que apontam para esse significado – o urso enjaulado em Eros, o deus do amor, o cavalo abatido a tiros em O corpo ardente, a tela Os amantes, de Magritte, na abertura de Convite ao prazer.
A aventura se encerra quando um barco de pescadores avista o grupo e o resgata. No meio da travessia Picchi percebe que se esqueceu do aquário, tenta fazer os donos do barco voltarem, mas eles dizem não. Na praia, o gato que habita a ilha (e que sobreviveu à má pontaria de Picchi) derruba o aquário, devora os bettas e decide ir descansar em seu cafofo, uma caverna com as coisas todas que as cavernas costumam ter, acrescidas do tal tesouro que Picchi e os agregados não conseguiram achar. Uma canção de ninar, executada num primitivo sintetizador, é tocada enquanto o felino se acomoda entre peças de ouro e pedras preciosas. Bisonho, porém simpático.
A Ilha (1963), por Eduardo Haak
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