A deserção em tempos de guerra é invariavelmente punida com a morte. No caso da Guerra do Paraguai os comandantes militares nem tinham de se dar ao trabalho de ir atrás dos desertores para lhes infligir a penalidade máxima – mais simples deixá-los vagar pelos charcos infectos da tríplice fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai), onde certamente morreriam de tifo, cólera ou malária. Enquanto a morte não chegasse, restava aos desertores saquear o que ainda fosse possível (uma vaca adoentada ali, um porco isolado acolá) ou tentar, por exemplo, algum acordo de sobrevivência com os índios locais. É isso que inicialmente um quarteto de desertores faz (dois brasileiros, um paraguaio e um nativo, pertencente sabe-se lá a qual lado beligerante) – chegam a uma tribo, oferecem armas ao cacique, etc. Tudo parece se encaminhar a uma acomodação razoavelmente amistosa, quando então o nativo (índio também) agregado ao tal quarteto mostra ser não um bom, mas um mau, um péssimo selvagem – mata uma menina da tribo para lhe roubar um colar. Luigi Picchi, que lidera o grupo, dá uns safanões no bugre latrocida (Picchi, além da pinta de vampiro, tem também algo do jeito arisco de ser do Moe, dos Três Patetas) e arranca o colar dele. Sabe que agora o grupo tem de sair dali o quanto antes, já que os índios da tribo virão atrás deles para se vingarem.Encontram uma fazenda habitada por um velho e alquebrado pai (Fernando Baleroni), duas belas filhas (Edla Van Steen e Odete Lara) e um empregado cego (Sérgio Hingst, usando uma peruca ridícula que o deixa com pinta de Corcunda de Notre Dame). Nada há a ser saqueado ali. Há um único porco, que Picchi ordena que seja abatido e preparado para a trupe. O grupo banqueteia-se e embebeda-se. O outro militar brasileiro desertor, alferes (André Dobroy), começa a manifestar sintomas do cólera. Picchi determina que ele agonize e morra longe da casa, e assim é feito – Edla e Hingst, aparentemente sem medo de se contaminarem, conduzem o semimoribundo para um descampado. É chegada a hora de dormir e Picchi diz que logo mais escolherá com qual das duas filhas beldades irá ficar (depois dos prazeres da mesa, os da cama, claro).
No meio da madrugada bate na porta de Odete. Ela abre a porta. Picchi diz que está com a mão machucada e que ela precisa fazer um curativo. Dessa proximidade física advém outra e a lebre é abatida (v. Carlos Eduardo da Corte Imperial), sem que haja propriamente resistência por parte da lebre. Não só não há resistência como Odete se apaixona pelo vampirão Picchi. Sugere fugir com eles, os desertores, em posse de certa quantidade de ouro que o pai ainda tem (que coisa feia, hem?, dona Odete, roubar o pai e ainda virar mulher de um bandoleiro). Paralelamente a isso, a outra irmã, Edla Van Steen, está tentando salvar o alferes, à base de hidratação, etc. O que parece improvável acontece e o alferes começa a se recuperar.
O barulho da artilharia paraguaia começa a se fazer presente, o que atemoriza a todos e leva o desertor das fileiras do Solano López a uma crise histérica – embebedado, sobe numa mesa e chuta tudo enquanto canta repetidamente o trecho de uma guarânia. (A atuação de José Mauro de Vasconcelos é impressionante, nessa e em outras cenas. É curioso que esse filme abrigue dois atores que vieram a ser de fato conhecidos como escritores, ele e Edla Van Steen. José Mauro foi ator constante nos primeiros filmes de Walter Hugo Khouri, estando presente em Fronteiras do inferno, 1959, Na garganta do diabo, 1960 – o filme aqui analisado – e A ilha, de 1963.) O grupo discute se é menos arriscado permanecer na fazenda ou procurar outro lugar, dada a proximidade do exército inimigo. O impasse não se resolve. Os índios (da tribo V for Vendetta) finalmente encontram os desertores. Picchi arrasta o mau selvagem para fora de casa e o entrega ao vingadores. Contudo, o colar que foi roubado da indiazinha morta está no bolso de Picchi e o mau selvagem malandramente o puxa para fora. Picchi ainda protesta, “não fui eu!, não fui eu!”, mas é cercado e levado pela indiada, que o pune cobrindo sua cabeça com a roupa ensanguentada da indiazinha e o largando à beira das Cataratas do Iguaçu, de onde fatalmente ele despenca. Cosa Nostra, Estado Islâmico e Vincent Price em Dr. Phibes aplaudiriam e pediriam bis, como na ópera.
Na Garganta do Diabo (1959), por Eduardo Haak
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