O amor verdadeiro que triunfa sobre formas espúrias de amor é o tema de Estranho encontro, filme que Walter Hugo Khouri dirigiu em 1958 – um Khouri que, aos vinte e nove anos e dirigindo seu segundo filme (o primeiro, O gigante de pedra, de 1953, não existe mais, exceto alguns fragmentos) mostrava ser um artista ainda inseguro, que deixou correr frouxo uma história repleta de clichês e inverossimilhanças. Pra piorar, os herois do filme (mocinho e mocinha) são interpretados por péssimos atores, Mário Sérgio e Andrea Bayard (o que, de alguma forma, é compensado pela dupla de vilões, Luigi Picchi e Lola Brah, atores notáveis).Um gigolô com um quê de bom moço (Mário Sérgio), gigolô circunstancial, encontra uma jovem e bela (Andrea Bayard) vagando à noite por uma estrada baldia. Coloca-a em seu carro e a leva para casa. Na verdade esconde-a lá, porque: o caseiro (Sérgio Hingst), que não gosta dele, não pode saber que ele levou uma mulher para casa; a casa não é exatamente dele, mas de uma prima (amásia, na verdade). A jovem, que cultiva um monte de cacoetes estilo Branca de Neve em fuga, demora um pouco até dizer coisa com coisa. Até que chega ao ponto em que consegue contar sua história: orfandade aos dezoito anos, pobreza, subempregos. Um dia, quando trabalhava numa loja de relógios, conheceu Hugo (Luigi Picchi). Por insistência dele logo estavam morando juntos. Na convivência domiciliar o homem gentil e atencioso dos primeiros encontros cedeu lugar a um tirano. Hugo gostava de lhe contar (e recontar, e recontar) como havia perdido uma das pernas, na guerra – a dor de ter trinta e dois estilhaços em brasa incrustados na carne, a gangrena, a amputação sem anestesia. Não havia intimidade física entre o casal, dada a vergonha que Hugo sentia de sua deficiência. A relação era constituída apenas de intimidações e expressões de caprichos dele. Durante um tenebroso passeio noturno em que Hugo insistia em correr imprudentemente com o carro, a bela escapou, ficou vagando pela estrada e, enfim, encontrou o gigolô circunstancial.
O gig e a bela pobretona fujona (das garras de Picchi, sensacional com um sobretudo preto de vinil, com uma baita cara de vampiro – uma mistura de Michel Temer e Carlos Zara –, arrastando-se de bengala pelas matas da São Bernardo do Campo de 1957) se apaixonam. Gig a acomoda num depósito na chácara. O caseiro, que: havia lido no jornal o anúncio da fuga da moça, com uma promessa de recompensa; estava desconfiado de alguma coisa; detestava mesmo o amante da patroa, não demora a descobrir o esconderijo e telefona para o Luigi Picchi, o Vampiro de São Bernardo. Nisso a patroa (Lola Brah) aparece e percebe que ali tem coisa – o jovem amante está distante, irritadiço, etc. Vai farejando chácara afora e chega ao esconderijo, onde o Vampirão está tentando convencer a Branca de Neve a voltar com ele; a bela foge para um bambuzal, o vampiro a encurrala; Lola Brah aparece e diz, chega, deixe a moça. Acolhe maternalmente a nova amada de seu, agora, ao que tudo indica, ex-amante; não só acolhe como ainda empresta o próprio carro para que o novo casal siga para a lua de mel que mais lhes aprouver; depois de tanta generosidade, faz, sozinha, uma cena de mulher abandonada, chorando numa escadaria.
Tento me colocar na pele de Khouri e imaginar as considerações que ele foi fazendo para avançar do mundinho melodramático e mocorongo de Estranho encontro para o mundo adulto de Noite vazia (incrível pensar que apenas seis anos separam esses dois filmes). Não é inverossímil que Khouri tenha chegado à conclusão de que, para um artista se firmar e amadurecer aqui, tem de jogar duro, ou seja, não ter a mínima complacência com o brasileiro médio, seu imaginário, suas expectativas, suas macumbas, seus carnavais, suas superstições. Ele, o artista ambicioso, não deve se afastar um milímetro da convicção de que o brasileiro é um tipo maroto que manipulará você para que você seja complacente com sua debilidade, sua inépcia, sua falta de atrativos. O brasileiro, portanto, mais do que merecer, precisa ser tratado na ponta do chicote.
Walter Hugo Khouri, conhecido por sua elegância no trato pessoal, galante com as atrizes que dirigia, empunhando um chicote? Não se deixem enganar pela aparente delicadeza de Khouri. Afinal, dirigir, em última análise, é manipular e mandar. É discriminar, dizer sim ou não. Dirigir, em suma, é a prevalência do indivíduo sobre a massa amorfa da coletividade. Só se faz isso – e se faz bem – com um chicote na mão (ainda que escondido) e com uma salutar dose de arrogância (ainda que ocultada sob uma camada superficial de gentileza). Claro que Khouri atraiu, com isso, a má vontade de seus pares e a acusação idiota, dentre outras, de que seus filmes eram pouco brasileiros (até Leon Cakoff, com uma nada salutar arrogância, tocou na questão na entrevista cedida por Khouri ao programa Vox populi, TV Cultura, 1982). Passadas essas discussões todas, temos hoje a obra de Walter Hugo Khouri. Quando vemos seus filmes, com as naturais oscilações de qualidade (alguns grandes, outros modestos), percebemos que estamos não diante de um punhado de coisas inconexas, mas de uma obra, com a coesão e a organicidade de uma obra. Sorte nossa de que Khouri tenha tido a vocação, o tônus e os meios para realizá-la.
Estranho Encontro (1958), por Eduardo Haak
WALTER HUGO KHOURI POR EDUARDO HAAK Posfácio de Carlos Ormond e Andrea Ormond Março de 2023 ÍNDICE Estranho Encontro (1958) Fronteiras do ...

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