Desconhecidos íntimos são aqueles desconhecidos com quem eventualmente estabelecemos algum tipo de contato e para quem podemos chegar a dizer (e de quem podemos ouvir) coisas surpreendentemente íntimas. Foi Nelson Rodrigues quem criou a expressão. Aliás, certas intimidades (e certas sinceridades) parece que só são possíveis entre desconhecidos – se você não vai ver mais aquela pessoa, pode confessar sem atenuações a antipatia que sente por ela, por exemplo. É um tipo interessante do ponto de vista dramatúrgico. Na verdade o tipo é bem mais do que interessante, sendo o agente dramático próprio (talvez o único possível) das situações fugazes de que nossas vidas também são feitas. Em Noite vazia, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1964, o desconhecido íntimo tem um papel fundamental.Numa noite como qualquer outra, dois amigos, Gabriele Tinti (Nelson) e Mario Benvenutti (Luís), saem de carro por aí com o objetivo de pegar mulher. O de Benvenutti, notadamente, é esse. Tinti mostra-se hesitante, entediado que está com a rotina de farras dos dois. Confessa que, naquela noite, preferia ir a uma festa de aniversário, “daquelas bem caipiras, com parabéns a você e tudo”. Na falta de uma festa de aniversário à mão, os dois dão uma parada num bar onde são abordados por uma jovem alcoolizada (a bela Marisa Woodward). Dispensam-na (“você é muito normal”, “hoje não estou bom para consolar ninguém, preciso que alguém me console”) e vão para outro lugar, onde logo percebem que estão sobrando (pessoas bem mais jovens do que eles, rock, etc.). Acabam indo a um restaurante japonês, onde casualmente encontram um amigo de Benvenutti acompanhado de duas prostitutas, Norma Bengell (Mara) e Odete Lara (Cristina). O sujeito, que se chama Lico, está pra lá de Nagasaki (bebeu muito saquê) e acaba apagando ali mesmo. Benvenutti e Tinti arrebatam as moças e as levam para a garçonnière deles.
No período de algumas horas (até o amanhecer) que eles permanecem juntos nada de extraordinário acontece. Mario Benvenutti e Odette Lara parecem experimentar algum prazer em se provocarem e se agredirem verbalmente, autorizados a isso que estão pela condição de desconhecidos íntimos um do outro. Gabriele Tinti conserva-se deprimido e introspectivo. Norma Bengell aparenta estar feliz, de alguma forma, e sem nenhum motivo em particular para estar (em algum momento ela confessará a Tinti que para ela tudo sempre está bom e que ela gosta de ser exatamente do jeito que é). Cada um deles lida com a situação de radical intranscendência daquela noite como pode, seja cochilando, tomando chuva (no terraço do apartamento), vendo filme pornô (O presente do Papai Noel), folheando revistas, etc. Contudo, se observarmos bem, a personagem de Norma Bengell se sai consideravelmente melhor do que os outros nesse embate com a vacuidade. A razão disso reside no fato de sua interioridade ser mais coesa do que a dos outros três. O barulho da chuva lhe traz a terna lembrança de um momento quando era menina e observava a mãe preparando alguma coisa num fogão a lenha (o ruído da chuva e o ruído de alguma coisa sendo frita são de fato semelhantes). Está implícita nessa conexão que lhe ocorre a continuidade essencial entre menina do passado remoto e a mulher de hoje. Quem tem a si mesmo se basta, talvez possamos dizer isso a respeito da personagem de Norma.
À sua maneira o rude e enfastiado Mario Benvenutti percebe essa distinção, esse caráter íntegro e benévolo da personagem de Bengell. Ao pagar Odete Lara pela manhã, ele diz, “isso é para o seu fundo de velhice, que logo você vai estar precisando”. Para Norma Bengell ele diz, quase gentil, “isso é por seu espírito de colaboração”. Apesar de seu ajustado senso de proporções, Benvenutti sabe que a felicidade é uma vocação pessoal e intransferível, sorte de quem tem, azar de quem não tem, Bengell nada pode ensinar a quem quer que seja, ela que seja feliz com a felicidade dela.
Depois de deixá-las numa Praça Roosevelt que ainda era um amplo descampado (sua forma atual data de 1970), Benvenutti e Tinti seguem pela Avenida Nove de Julho (vê-se o MASP em construção quando eles se aproximam do túnel). Benvenutti fala sobre uma festa que ocorrerá no dia seguinte, que uma tal de Renata vai estar lá, o que desperta algum interesse em Tinti. Benvenutti pergunta se é para deixá-lo em casa, Tinti diz que prefere ficar naquela pracinha, que vai caminhar um pouco, que não adianta ir dormir agora, que dali a três horas ele vai ter de estar no trabalho. Benvenutti deixa o amigo na Avenida Brasil (com as mesmas casas de hoje, mas ainda residenciais). Tinti observa uma árvore, se próxima dela. A câmera enquadra a árvore inteira, esse símbolo axial (eixo do mundo), vertical, ascensional. Embora um símbolo não signifique exatamente isso ou aquilo, sendo antes uma matriz de intelecções (Susanne K. Langer), o sentido do símbolo árvore ali é amplamente eloquente – talvez não haja saída para nossas angústias no plano da pura horizontalidade. Mas talvez haja se olharmos para o alto. Talvez.
Noite Vazia (1964), por Eduardo Haak
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