O Corpo Ardente (1966), por Eduardo Haak

O corpo ardente, de 1966, foi o filme dirigido por Walter Hugo Khouri que mais o satisfez. Sua personagem principal, interpretada por Barbara Laage, poderia ser chamada de Marcelo de saia. Embora não seja predadora como os Marcelos (sobretudo os de Roberto Maya) e tenha uma feição introspectiva, Laage tem o mesmo ardor, o mesmo desalento, a mesma ânsia pelos absolutos. Em nenhum outro filme de Khouri uma personagem feminina tem tamanha amplitude e centralidade. Selma Egrei é a atriz principal de O anjo da noite, de 1974, mas divide bastante o protagonismo com Eliezer Gomes, com as crianças endiabradas à la The turn of the screw, com os animismos todos presentes na casa onde vai trabalhar. As filhas do fogo, de 1978, é protagonizado por uma penca de mulheres, algumas das quais em versão desencarnada. Geneviève Grad protagoniza O palácio dos anjos, de 1970, mas o escopo de sua personagem (a mulher bonita que sai de uma situação de submissão, secretária eficientíssima, e conquista a alforria se prostituindo) é bem mais modesto que o de Barbara Laage em O corpo ardente

Laage, uma mulher atraente passada dos quarenta e cinco, percebe-descobre que o amante, Mario Benvenutti, se desinteressou dela. O marido de Laage, interpretado pelo Pedro Paulo Hatheyer, também está afundado em pasmaceira com a amante, interpretada por Lilian Lemmertz. Lemmertz se tornou amarga e reclamona. Os dois passam longos períodos na sala do apartamento dela, olhando a TV, como qualquer casal casado corroído pelo tédio. No silêncio birrento de Lemmertz ecoa sua queixa fundamental – ela quer que Pedro Paulo se separe da mulher para ficar com ela, aquela história banal de sempre, o apego à crendice de que o casamento vai extinguir o vazio que as pessoas sentem no peito, etc. O filme poderia dar um encalhada aí, se Khouri desse mais atenção a esse draminha de ser a outra, mais do que o tema merece. Khouri, no entanto, tinha expertise em matéria de upper class. Drama de corno, sofrência, é, sem dúvida, ideologia de classe média, ideologia no sentido de falsa consciência, como dizia a besta do Carlos Marx (v. Nelson Rodrigues). (Citando outro filme de Khouri, a agressiva possessividade de Helena Ramos em relação ao marido, Serafim Gonzalez, em Convite ao prazer, de 1980, contrasta com o laissez faire afetivo de Sandra Brea em relação a Roberto Maya, estes dois formando o casal upper do filme, aqueles, o de classe média que tem discussões prosaicas durante o jantar, discussões sobre, por exemplo, a troca de cortinas de casa, “ficaram um pouco caras, mas vão durar bastante”, etc. Helena Ramos, por trás de sua discurseira moralista contra a infidelidade, “rico não tem vergonha na cara”, etc., está apenas cuidando do que é dela, sendo seu status de mulher casada seu único capital. Brea, rica de nascença, não precisa ser ciosa nesse sentido.) A upper class tende a ter, em relação a assuntos sexuais, uma atitude mais para a máxima de Terêncio, “nada do que é humano me é estranho”. Pedro Paulo Hatheyer sabe que pode rifar a mulher porque amante é uma substância perecível como qualquer outra que existe sobre a Terra. Estamos todos, homens e mulheres, no mesmo barco, na mesma ratoeira, qualquer metáfora do tipo (“não há saída”) serve. Lilian Lemmertz e suas reclamações de mulherzinha fulguram por um breve instante na tela e desaparecem (“sorry, periferia”, como dizia o Ibrahim Sued), e Khouri aponta sua câmera para o que/quem de fato importa.

Passado o choque de perceber-descobrir que o amante havia se desinteressado dela, Barbara Laage decide viajar com o filho. Seu destino é Itatiaia, região montanhosa na tríplice fronteira entre os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Fazia anos que ela não ia à casa, que pertence à sua família desde que ela era criança. “Está quase tudo como antes, só os móveis mudaram um pouco”, ela diz à criada. Sempre há nesses reencontros com o passado um anseio restaurador pelo eterno, definido por Boécio como posse plena e simultânea de todos os momentos. Talvez cheguemos a intuir que para além do tempo está a eternidade que o abrange. Por outro lado, o que de fato vemos à nossa frente são os vazios e as ausências que parecem aumentar à medida que o tempo passa. Não temos garantia de que somos algo além de um rudimentar conjunto reflexos condicionados, uma fantasmagoria momentânea. Se quisermos arriscar ir além, teremos de nos contentar com o universo simbólico, com um símbolo ou outro, necessariamente insatisfatório e conflitivo, alusivo a nosso possível devir. 

Laage sobe com o filho, Wilfred Khouri, um garoto de seus oito, nove anos, pela trilha que vai até o Pico das Prateleiras. Encena, ludicamente, sua coroação como rei, sentando-o no trono de pedra (uma formação rochosa de fato parecida com um trono). A ludicidade da coisa não exclui o óbvio investimento libidinal que ocorre ali, Jocasta entronando Édipo, etc. Na volta, os dois avistam o cavalo preto que fugiu de uma fazenda próxima, que está sendo procurado pelo fazendeiro, Sérgio Hingst, e seu capataz, David Cardoso. Hingst, algumas cenas antes, passou pela casa de Laage e perguntou aos criados se eles tinham visto o cavalo. Ele disse que antes o animal comia em sua mão e que, de um dia para o outro, parece ter enlouquecido. Há uma troca de olhares entre Hingst e Laage, hostil de parte a parte. Hingst parece dizer, “é sua presença nefasta aqui, bruxa, que enlouqueceu o bicho”. Não se trata de uma simples superstição de roceiro, como a história acabará por demonstrar. Laage parece mesmo exercer influência sobre os cavalos, que ficam desassossegados na sua presença (“a mulher é a senha do motim”, como disse Walter Franco).

O cavalo preto correndo livre pela paisagem rochosa de Itatiaia se torna o totem de Laage. Ela tenta protegê-lo da dupla que está em seu encalço. Torce por sua fuga. Contempla-o como algo que ao mesmo tempo está perfeitamente instalado no mundo natural (como nunca o ser humano consegue estar) e como um símbolo alusivo ao mundo dos deuses (um mundo também inacessível a nós). Seu marido, Hatheyer, vem visitá-los e traz uma filmadora de presente para o filho, Wilfred Khouri, que, fisicamente muito parecido com o pai (Walter Hugo), se torna uma espécie de O pequeno cineasta. A filmadora super-oito leva Laage e Hatheyer a um mundo lúdico que parece de alguma forma restaurá-los, devolvê-los a uma espécie de plenitude infantil, no melhor sentido que a palavra infantil pode ter (“se não fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus”, v. Jesus Cristo). Um filma o outro fazendo caretas engraçadas, usando óculos ridículos, encenando suicídios e homicídios de maneira cômica. Apesar de todos pesares, amantes, etc., vemos que há muita ternura e afeição entre os dois. A presença da câmera também introduz em O corpo ardente a tal da metalinguagem, o cinema que discorre sobre o cinema. O desfecho do filme, aliás, irá por aí, falarei disso um pouco adiante.

A dupla fazendeiro-capataz apela a uma égua no cio para atrair e laçar o cavalo fujão. É inevitável pensar em nossos próprios aprisionamentos decorrentes de nossos impulsos sexuais (o filme de Walter Hugo Khouri de 1979 se chama O prisioneiro do sexo). O cavalo se aproxima da égua, a cobre e escapa mais uma vez. Hingst, por fim, vence o animal, abatendo-o a tiros, depois de ter sido arrastado por ele após laçá-lo. (O mundo da cultura vence o mundo da natureza, etc.) Laage segue o rastro de sangue e honra a memória de seu profanado totem depositando flores sobre uma pedra. O oráculo pronunciou sua sentença, Laage sabe que nada mais lhe será dito, é hora de voltar para São Paulo (Laage ainda vê uma imagem síntese enquanto abastece o carro para pegar a estrada, um cavalo atado a uma carroça – estático, prosaico, servil).

As artes narrativas, cinema, livros, etc., servem para restaurar uma relativa plenitude do real que não teria como ser restaurada de outra forma (alguns sonhos exercem também essa função). Laage está de volta a seu mundo comum (contraposto ao mundo especial da aventura, como definiu Joseph Campbell em O herói de mil faces), suas festas burguesas com suas discussões pedantes sobre pintura, os acenos de possíveis novos amantes, etc. O filho brinca numa das salas da casa com um projetor, que exibe na tela o filme rodado em Itatiaia – as brincadeiras dela e do marido, o cavalo preto correndo pela estrada, etc. Apesar de se tratar de eventos de um passado então bem próximo, eles são isso, passado, portanto irrecuperáveis e inacessíveis. Sim, talvez o que não esteja mais presente no tempo, aqui e agora, continue a existir numa espacialidade ainda inacessível a nós, mas não temos como ter garantias ou certezas a esse respeito. Laage observa o filme de maneira quase furtiva. As cenas a divertem e enternecem. Vemos o filme de Laage vendo o filme e nos enternecemos com seu enternecimento. Estamos todos no mesmo barco, na mesma ratoeira, etc. Shakespeare dizia que somos feitos da mesma matéria que os sonhos. Walter Hugo Khouri parece dizer que, de alguma forma, somos feitos da mesma matéria que os filmes – substância fotossensível fixada em celulose.


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