As Amorosas (1968), por Eduardo Haak

A cena é comum. Um jovem (Paulo José, Marcelo, eu, você, todos nós), mas já não tão jovem que possa apelar a alguma complacência do tipo, o.k., erros típicos da juventude, da imaturidade, ou seja, um cara que já passou dos vinte e cinco e continua estudando, prestes a jubilar, sem qualquer perspectiva profissional ou existencial factível, caminha a esmo por São Paulo, que em 1968 já era a mesma matriz de impossibilidades infinitas que é hoje. Marcelo (eu, você) olha umas vitrines na Avenida São Luiz com aquele olhar de quem sabe que não vai encontrar o que está procurando (provavelmente nunca, em nenhum lugar). Cogita pegar um ônibus, conta o dinheiro e vê que dá para um táxi. (Enquanto a grana dá para um táxi, talvez dê pra ir levando.) Vai ao prédio onde a irmã (Lilian Lemmertz, linda e inexpugnável como sempre) mora, na esquina das ruas Oscar Freire e Ministro Rocha Azevedo. É recebido carinhosamente por ela, fala sobre a vida, recebe uns conselhos, toma umas leves reprimendas, flerta com a amiga que mora com a irmã (Jacqueline Myrna), senta-se com ela na parte externa da cobertura e ouve o que ela tem a dizer, toda animada – que sua carreira de atriz finalmente está deslanchando, etc. Marcelo parece razoavelmente bem instalado ali, naquele aspecto momentâneo da realidade, sentado na parte externa de uma cobertura nos Jardins, tomando café, ouvindo o falatório narcisista da pseudoatriz, meio que se deixando levar pela relativa atração que sente por ela, uma fulana que obviamente pertence à segunda divisão, em todos os sentidos, mas que de repente até que rende uma boa trepada (a vitalidade dos vinte e cinco anos nos impõe raciocínios e decisões do tipo). A aspirante a atriz em nada difere das arrivistas atuais. Hoje, em vez de extra da TV Tupi, figurante do Zé do Caixão, seria influenciadora digital, participante de reality show, faria harmonização facial e, last but not least, diria já ter sido abusada sexualmente (pauta boa para cavar entrevista). Marcelo, por fim, morde uma grana da irmã (ambos lidam com a situação com considerável compostura) e volta para seu cantinho no mundo, um quarto nos fundos da casa bacana de um amigo rico, cedido por este sabe-se lá até quando, com combustível (grana) para mais alguns dias. Ali estão os discos de Marcelo (Mozart, A Love Supreme, do John Coltrane, Musikantiga), os livros (Heidegger, Spinoza, D. H. Lawrence, Céline, revista Mad), os lençóis amarrotados, as cogitações (algumas rabiscadas na parede, à semelhança dos presídios). Clarice Lispector dizia que ela era uma pergunta. Marcelo talvez seja um dasein heideggeriano, que simplesmente está-aí (e que não está-nem-aí, no mais das vezes). O ser e o tempo permanece em sua pilha, mas, milênios antes de Herbert Vianna, ele já sabia que os livros na estante já não têm tanta importância assim.

O negócio é diversificar os investimentos, inclusive (ou sobretudo) os libidinais. Isso soa mais Palhares (o canalha rodriguiano que não respeita nem as cunhadas) do que D. H. Lawrence, de quem Marcelo sem dúvida está mais próximo. De qualquer forma, ali está a Aneci Rocha, aluna de um curso qualquer de comunista (sociologia, geografia, pedagogia, etc.) na USP, cercada de amigos com aquelas caras de maus-bofes que o Lula costumava exibir em 1983, roisfejão do trabaiadô. A moça é até que legal, tem sensibilidade e inteligência para perceber Marcelo em sua totalidade, suas contradições, polarizações, etc., além de obviamente não levar tão a sério seus colegas uspianos e seus maus-bofes (em questão de um ou dois anos a maioria estará com a cara estampada em cartazes de Terroristas procurados; espero que Aneci tenha sido poupada dessa tragédia inútil). 

A diferença entre Aneci e Jacqueline Myrna é que a segunda é tosca, primária, raiz, e talvez por isso mesmo tenha uma conexão maior com as coisas que de fato são reais. Provavelmente, por ser uma criatura primitiva, é uma amante mais crepitante do que a Aneci e suas abstrações uspianas. Não que isso proporcione alguma satisfação duradoura – não proporciona. Marcelo, após ver o vergonhoso desempenho de Myrna num programa de TV, tenta chamá-la à realidade, “estava horrível, isso não vai te levar a nada”, etc. Ela se defende, o que significa defender vigorosamente as ilusões que nutre a seu próprio respeito. (Apenas essas ilusões a separam de uma realidade à qual ela não quer ser chamada de volta, já que a realidade que lhe cabe provavelmente é a de uma vidinha sórdida em algum bairro periférico e lamacento, emprego ruim, etc.) Para mostrar que está por dentro, que não é mais uma criatura jogada fora, aceita entrar na perua Veraneio de uma turma pra lá de duvidosa, que fazia sabe-se lá o que ali nos estúdios da Rede Bandeirantes (atual Band), turma essa capitaneada por um Stênio Garcia cheio daquela vitalidade de búfalo da ilha de Marajó de que falava Nelson Rodrigues. Marcelo, que acha que não tem muito a perder, resolve ir junto. Os dois são levados a um bosque, onde são ampla e festivamente esculachados por Stênio e sua turma. Jaqueline é estuprada, Marcelo apanha até não poder mais. 

O que são exatamente Stênio e sua turma só pode ser conjecturado. Talvez formassem um grupo de quebra-galhos, nebulosa e parcialmente agregado ao canal de TV. Não é impossível imaginar alguns deles como informantes do DOPS, banda podre da polícia civil, esquadrão da morte, CCC, etc. Independentemente de sua natureza nebulosa, o grupo é uma alegoria de que o poder bruto (ou seja, violência bruta) no fundo determina o que vai e o que não vai ser, o que pode e o que não pode, indiferente aos possíveis protestos de Marcelo, Jacqueline ou Aneci (ou meus ou seus). 

Marcelo sobrava na realidade 1968 como sobraria hoje. Mas o senso de desimportância que fatalmente vem a acometer os Marcelos talvez seja mais atroz atualmente. Em 1968 parece que o mundo não estava tão saturado, com os canais tão obstruídos – o mundo não era feito à imagem e semelhança das multidões de mocorongos, toscos e ignorantes que hoje entopem tudo, em todos os lugares. Os ajustados tinham algum interesse em emitir opiniões, ainda que críticas, sobre os desajustados. Viam Marcelo com alguma empatia, acenavam com as possibilidades de realização oferecidas pelo mundo do trabalho, do esforço dirigido, etc. Mas esse diálogo se esgotou há muito tempo, com cada lado se assumindo como indigno à sua maneira. Trabalhar, afinal de contas, é aderir a um padrão de consumo que, em algum momento (desemprego, etc.), vai arrastar você a um mundo de dívidas e inadimplências. Isso sem falar na filha da putagem reinante no mundo corporativo, etc. Você está certo, Marcelo, melhor mesmo não sair do seu quartinho, ainda que isso implique em ser pela vida toda um vadio sustentado pela irmã. Na pior das hipóteses sempre podemos abraçar a mendicância, não é mesmo? Diógenes vivia num barril, Diógenes era um homem, logo todo homem pode perfeitamente viver num barril, premissa maior, premissa menor, conclusão.


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