A prostituta é uma das personagens dramáticas fundamentais porque expressa a implacabilidade de uma lei – a lei que define o dinheiro como o grande mediador das relações entre homens e mulheres. (Talvez a coisa vá além disso e a prostituta seja a grande metáfora do mundo, do peso maciço das necessidades naturais – sobrevivência, reprodução, etc. –, mas também de suas exorbitâncias, luxurias, etc.) É uma personagem incômoda porque não deixa ninguém esquecer que mesmo as mulheres honestas (casadas, etc.) têm mais semelhanças do que diferenças com as vadias (nenhuma mulher honesta pode realmente afirmar que nunca foi para a cama por dinheiro – e nenhum homem pode afirmar que nunca pagou por uma mulher). Sendo uma personagem altamente conflitiva, que habita a fronteira nebulosa entre dois mundos (mundos que se pretendem opostos, mas que, afinal, não são tão opostos assim) – ou seja, sendo uma personagem que exige uma calibragem bastante precisa, difícil de se obter, a prostituta pode facilmente ser sentimentalizada, cair no kitsch (Fellini incorre exatamente nesse erro em Noites de Cabíria). Aliás, o kitsch impera em se tratando do assunto. Relatos pitorescos sobre prostituição são kitsch puro – condutas supostamente transgressoras (que não transgridem coisa alguma), suposta expertise em sem vergonhices que depois serão vendidas para donas de casa apimentarem seus casamentos, supostas revelações de segredos (que nada têm de secretos), suposta moral da história “fui fundo na degradação, mas superei isso tudo” (nada mais cansativo – e kitsch – do que relatos rehab estilo Walter Casagrande Jr.), etc. As prostitutas, tão semelhantes às mulheres normais, também costumam se assemelhar às normais no quesito banalidade.A personagem de Geneviève Grad em O palácio dos anjos, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1970, pouco tem a ver com o percurso dramático que comumente se verifica entre as prostitutas. A prostituição, no caso dela, foi uma mera circunstância, rito de iniciação, espécie de triagem que separa aqueles que suportam ver as coisas tais como elas são (talvez nada desnude mais o ser humano do que o sexo) dos que não conseguem. E que separa, ainda, os que meramente suportam ver a deslumbrantemente monstruosa espécie humana enfim desmascarada dos que observam a coisa com real interesse e fascínio, e que fazem questão de persistir nessa trajetória não por outro motivo senão o de se saberem firmemente instalados na realidade, e cada vez mais. Geneviève pertence a esse segundo grupo. É uma criatura incomum, invulgar. É natural, portanto, que tire algum proveito disso.
Na abertura do filme são mostrados vários quadros da pintora búlgara-brasileira Sonya Grassmann. Os quadros mostram apenas mulheres, todas retratadas como belos e lascivos animais, ninfas com olhos gigantes, cariciosas entre si. A música, para guitarra (uma guitarra meio Robby Kriegger, The Doors, em The end) e flauta (os fraseados aludem a Syrinx, de Claude Debussy), parece ter o propósito de nos hipnotizar para que entremos naquela (al)cova das leoas. Que a princípio não passa de um inocente pool de secretárias num ambiente corporativo. A trama começa a se delinear quando Geneviève e duas colegas, Adriana Prieto e Rossana Ghessa, cansam-se da vidinha de salários modestos, apartamentos divididos, humilhações, etc. Pra que essas privações todas se podem faturar alto explorando coroas endinheirados? Até aí, é o comum nesse tipo de história. Mas Geneviève logo se distingue das duas colegas. Enquanto uma vomita depois de se deitar com um cliente (e decide voltar, surtada, para o subúrbio de onde veio, onde é calorosamente acolhida por seu velho cão vira lata), Geneviève vai dobrando as apostas. O ex-chefe, Luc Merenda, enfim a vê como uma criatura da mesma espécie que ele (ambiciosa e inescrupulosa), cogitando-a como possível parceira de futuras trapaças. Geneviève não recua. Por que recuaria? O mundo, afinal de contas, tem algum limite? (Geneviève acaba encontrando um possível limite em seu encontro com Norma Bengell, mas o contorna.)
É fascinante testemunhar como as pessoas reluzem quando lhes é dada oportunidade de serem exatamente aquilo que são (nada mais reluzente do que um canalha realizado em sua canalhice, ou um santo realizado em sua santidade, ou um idiota realizado em sua idiotia, etc.). A grande ficção não é feita de poses, clichês, atenuações, fazeções de média com o que supostamente é mais conveniente. Para além da aprovação ou desaprovação de condutas específicas (nemesis fatalmente punirá hybris, podemos ficar sossegados quanto a isso), a ficção presta reverência àquilo que é real. Geneviève, ao fim e ao cabo, revela-se uma cafetina das mais reluzentes e toda sua graça reside nisso (assim como a graça do Mano Brown reside em ele ser um indiscutível e reluzente maloqueiro, por exemplo). Tido como um filme menor de Walter Hugo Khouri, O palácio dos anjos na verdade é insuspeitadamente imenso.
O Palácio dos Anjos (1970), por Eduardo Haak
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