Quis o destino que boa parte dos viventes do século XX fossem acolhidos em seus desamparos fundamentais por um ramo então experimental da medicina: a psiquiatria/psicologia. Acolhidos, sim, porque a cultura psi se expandiu para muito além de uma metodologia clínica voltada à tentativa (invariavelmente fracassada) de curar transtornos mentais, tornando-se chave explicativa para tudo – fulano tem um tique nervoso porque a garota mais bonita da escola esnobou-o quando ele tinha doze anos, sicrano não consegue progredir na vida porque inconscientemente continua subjugado por um pai tirano, beltrano escolheu a profissão de diretor de cinema porque pôde exercer através dela, de modo sublimado, suas pulsões sádicas e masoquistas, etc. A coisa foi muito além do nível individual – regimes políticos autoritários têm em sua base multidões incapacitadas para o gozo sexual, segundo Wilhelm Reich (Reich, de acordo com o Analista de Bagé, se abanque no más, tchê, é onomatopéia de cuspe). O nazismo, segundo C. G. Jung, em parte pode ser explicado por uma figura mítica – Wotan – que habita o inconsciente coletivo da Alemanha. Sigmund Freud via a interdição do incesto na raiz de nossas manifestações culturais todas. E por aí vai. Foi fatal que os conflitos humanos ficcionalmente elaborados não escapassem dessa influência: por trás de todo Hamlet, Otelo ou Rei Lear há uma psicopatologia que, se deslindada, resolverá toda problemática a respeito deles.Malucos sempre foram alvo de interesse e curiosidade. Manicômios eram lugares de visitação pública onde os doentes exibiam seu freak show, entre o cômico e o grotesco (v. Atrocity exhibition, Joy Division). Toda cidadezinha do interior tinha seu louco de estimação. Nenhum mistério nesse interesse todo. Os portadores de distúrbios mentais normalmente são muito expressivos (expressividade fugaz, claro; nada mais monótono do que alguém em permanente desconexão com a realidade). Indo para um grau mais brando de psicopatologia, os neuróticos também podem ser interessantes. Ou no mínimo ter uma presença impactante. Penso agora no Dennis Hopper em Blue velvet. Ou na famosa entrevista que Clarice Lispector deu para a TV, meses antes de morrer. Ou no Seymour Glass e seu diálogo deliciosamente alucinado com a garotinha Sybill Carpenter em A perfect day for bananafish, de J. D. Salinger). Expressividade, presença impactante. A pergunta que isso tudo pode suscitar é: um neurótico (ou seja lá que distúrbio o infeliz tenha), apenas enquanto neurótico, acometido pelos paroxismos de seu mal, pode ter algum interesse dramático verdadeiro? Vejamos o caso de Lilian Lemmertz em As deusas, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1972.
Lemmertz vai com o marido, Mario Benvenutti (curioso que noutra vez que vi As deusas fiquei com a impressão de que a ligação entre os dois fosse meio clandestina, de amantes, etc.), passar uns dias numa casa de campo. A casa foi emprestada pela psiquiatra de Lemmertz, Kate Hansen. Hansen não convence nem um pouco no papel. Sua presença não preenche o espaço cênico ou os silêncios da personagem. Sua movimentação corporal é rígida. Sua beleza é, digamos, mais ou menos.) Lemmertz está passando por um transtorno psíquico intenso (síndrome do pânico ou transtorno de ansiedade generalizada talvez fossem diagnósticos aproximados hoje). Suas melhoras e pioras são súbitas e inexplicáveis. A psiquiatra, jovem e inexperiente, confessa que não sabe mais o que fazer naquele caso. Lemmertz pede que a psiquiatra vá ficar com ela. Hansen vai. Benvenutti se força na cama da bela (vá lá...) psiquiatra. Lemmertz a seduz. A coisa acaba num trisal. Hansen não digere bem a situação e sai fora (sai fora do caso clínico também, indicando a paciente a um colega). Lemmertz supõe-se curada. Fim.
Descontada sua grande beleza e extraordinária expressividade (a cena, logo no começo, em que ela é penetrada por Benvenutti é uma das coisas mais eróticas já mostradas no cinema), Lilian Lemmertz só diz banalidades em As deusas. Seus anseios de realização pessoal e suas considerações pessoais são francamente ingênuas, “é uma pena que precisemos de dinheiro mesmo para as coisas mais elementares”, “não vou mais trabalhar para ninguém, agora quero fazer alguma coisa criativa”, etc. Contudo, tudo soa profundo porque Lemmertz tinha aquela presença esmagadoramente densa que todo grande ator tem. Mario Benvenutti acaba sobressaindo no filme porque o que ele diz e faz tem razão e proporção. Sua decepção, enfado e desespero são plenos de realidade, “não posso nem pensar em viver sem ela”. Sua vida profissional já está sendo afetada pelos problemas psíquicos da mulher. A situação lembra a transtornada Zelda Fitzgerald drenando o marido, Francis Scott, até o ponto da aridez (“de três desertos”, v. Nelson Rodrigues), da derrocada, do crack-up. Se observarmos direito, o grande personagem do filme, com contornos de fato trágicos, é o de Benvenutti. Lemmertz é apenas a magnífica sarna que ele (infelizmente) arranjou pra se coçar.
As Deusas (1972), por Eduardo Haak
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