O Último Êxtase (1973), por Eduardo Haak

Marcelo (Wilfred Khouri) é um rapaz de dezoito anos que quando criança experimentou um momento de grande felicidade e plenitude ao lado dos pais e dos irmãos ao acampar num bosque. Pouco mais de uma década depois, ele resolve revisitar o lugar. Há a esperança de que ele prove de novo a tal plenitude. Contudo, ele nada encontra ali além da natureza em seus aspectos hostis (chove o tempo todo, etc.). O tédio e a decepção imperam. Nem a namorada (Ângela Valério), com quem ele acabou de ter a primeira experiência sexual, é capaz de preencher seu vazio. O casal de amigos que completa o quarteto nada tem a oferecer – Ewerton de Castro não passa de um amigo superficial e interesseiro e Dorothée Marie Bouvyer reclama de tudo o tempo todo. Um casal de adultos, Lilian Lemmertz e Luigi Picchi, aparece com um trailer. De certa forma eles acolhem os jovens – oferecem comida (bem melhor do que as salsichas tipo Frankfurt enlatadas que eles vêm consumindo), bebida, remédios, banho quente. Picchi flerta com Bouvyer (que fica bem empolgada com o coroa aparentemente cheio da nota), Lemmertz flerta com Ewerton. Lemmertz também flerta com Wilfred Khouri, mas não demora a notar que nada pode fazer por ele. Khouri recusa-se a se integrar ao grupo, mantendo um comportamento arisco e hostil. Acaba indo embora sozinho, de carona, deitado na caçamba de um caminhão, enquanto os outros todos passeiam de barco por um lago.

Parece que foi Goethe quem inventou o gênero romance de formação, bildungsroman. Aqui e ali a ficção protagonizada por jovens deu bons resultados. É inevitável falar em J. D. Salinger. Raymond Radiguet, raro caso de talento literário precocíssimo (morreu aos vinte anos), nos legou um grande romance, Le diable au corps, obra prima da cafajestagem, por acaso juvenil. Em cinema, o mestre do gênero foi John Hughes (Ferris Bueller’s day off, Breakfast club, Sixteen candless, etc.). O último êxtase, filme de Walter Hugo Khouri de 1973, não é propriamente um filme sobre a problemática do jovem, embora tenha alguns elementos disso. Marcelo/Wilfred Khouri, após ver que não havia como voltar ao Éden infantil, faz de sua presença quase muda (e de sua cara petrificada) uma espécie de acusação permanente contra tudo que existe. Nada há a ser dito e não há ao que se integrar. Tudo que acaba sendo dito expressa – e, no limite, apenas expressa – a angústia do que não pode ser dito, o que é uma forma radical (e nada ingênua) de ironia. Wilfred, contudo, não tem propriamente consciência de que nada há a ser dito e de que não há ao que se integrar. Falta-lhe maturidade para ser irônico. Ele age como age por birra e narcisismo ferido, apenas. Todos personagens do filme, num momento ou outro, fazem a pergunta, “o que tem esse rapaz?”. Minha avó diria, “cara feia pra mim é fome”. 

Fazendo-se um razoável esforço para ignorar a centralidade que Marcelo/Wilfred tem no filme, a atenção do espectador fatalmente se voltará a Luigi Picchi, sem dúvida o personagem mais interessante da história. Homem de meia idade (cinquenta e poucos em 1973), biotipo tigrão italiano, caçador, etc., num diálogo com Wilfred diz que aos dezoito anos já estava na guerra – e que aos dezenove estava num campo de concentração. Wilfred, não sem alguma razão, questiona, “e isso serviu para alguma coisa?”. Picchi pensa um pouco e responde, “não, não serviu para nada”, “quando penso no que aconteceu parece que estou vendo um filme, que nada daquilo aconteceu comigo”, “o que interessa é que agora estou aqui, tomando esse bom uísque”. Noutra cena ele desarma Wilfred com um peteleco (e ainda o humilha ao lhe devolver a arma através da mulher, que se mostra bem feliz em agir como garotinha de recado do marido). Noutra, ainda, deixa Lemmertz brincar de seduzir os rapazes porque sabe que eles são uns bobinhos que ela mesma seria capaz de esmagar (enquanto isso ele brinca com a bela Dorothée e estamos quites). Trata-se de um homem forjado a ferro e fogo, sem o menor traço de autocomiseração, apto a dizer coisas semelhantes às que Primo Levi disse em É isto um homem. É provável que haja nisso tudo um comentário de Walter Hugo Khouri sobre aquela juventude fajuta (v. Araci de Almeida em Quem tem medo da verdade?) que dizia não acreditar em quem tinha mais de trinta anos. Os termos do confronto são datadíssimos (brotos versus coroas), mas não o confronto em si, entre maturidade e imaturidade.

Espremido entre o notável As deusas, de 1972, e o impressionante O anjo da noite, de 1974, O último êxtase é um filme de fôlego menor dentro da filmografia khouriana, filme em que ele expõe certa apoteose de uma masculinidade meio hemingwayniana (masculinidade essa, aliás, explorada em seus primeiros filmes), algo que, a bem da verdade, não tinha mesmo muito a ver com o Khouri. WHK era um homme à femmes, no que estava certíssimo. Pra que falar de homens – suas armas, suas garras, suas cicatrizes – se as mulheres são tão mais interessantes?


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