O Anjo da Noite (1974), por Eduardo Haak

O gênero ficcional terror padece de uma grande limitação, e digo limitação no sentido de debilidade mesmo. Explico: gênero, ou mesmo estilo, em última análise é limite – uma coisa é trágica, portanto não é cômica, etc. Contudo, nem tragédia nem comédia, a despeito de serem limitadas, padecem por isso de qualquer debilidade constitutiva – há grandes obras ficcionais nos dois gêneros, o que implica dizer que há grandes personagens trágicos e há grandes personagens cômicos. A fragilidade do gênero terror advém do fato de seus personagens serem colocados, sempre e necessariamente, na posição de vítimas de forças transpessoais (malignas, etc.) contra as quais nem a consciência nem a vontade humanas podem qualquer coisa. São personagens incapazes de ações dramáticas verdadeiras, que envolvam o risco moral da escolha (e as possíveis consequências funestas de uma escolha). Não têm como destino o exílio do trágico ou a reintegração (o desfecho de toda comédia é sempre um rito de integração) do cômico. São previsíveis cabras marcados para morrer, ou para matar ou, no mínimo, para se darem muito mal, independentemente do que façam ou deixem de fazer. O interesse que eles podem ter, portanto, é necessariamente reduzido. Deve-se, no caso de filmes, exclusivamente a caracterizações fascinantes feitas por atores de talento (Jack Torrance, Jack Nicholson em The shining, Stanley Kubrick, 1980, talvez seja um exemplo). Os únicos agentes de fato nesse gênero de histórias são as tais forças malignas (fantasmas, demônios, lugares mal-assombrados, etc.). Seu público preferencial são ou crianças ou adultos infantilizados.

Artistas de talento, contudo, podem elevar gêneros que padecem de debilidades constitutivas. Ocorre-me, agora, o exemplo (exemplo modesto, mas válido) de Um lobisomem americano em Londres, direção de John Landis, 1981. O personagem de Griffin Dunne é transformado num zumbi, num morto vivo, mas continua com a mesma personalidade (um bobalhão simpático), o que gera um efeito cômico irresistível. Isso porque um bobalhão simpático fazendo suas piadinhas bobas de sempre, mas com um corpo em avançado estado de putrefação, é um comentário irônico tanto sobre zumbis quanto sobre bobocas dados a fazer gracejos. Outro exemplo (esse imodesto) é Borges. Uma parte considerável da obra de Jorge Luis Borges é constituída de releituras irônicas da literatura fantástica. E por aí vai. Creio que Walter Hugo Khouri fez uma operação alquímica análoga a essas em O anjo da noite, de 1974, injetando uma sutil ironia no plot a influência maligna de uma casa mal-assombrada no comportamento de seus moradores

Selma Egrei, jovem estudante de psicologia, batalhadora, etc., descola um bico como cuidadora de duas crianças (de oito, dez anos, menina e menino) numa casa em Petrópolis. Os pais das crianças, Lilian Lemmertz e Fernando Amaral (que também formam um casal em O desejo), irão ao Rio e a Brasília em recepções dadas pelo governo à rainha (é presumível que seja a Elisabeth II). Egrei recebe algumas instruções de Lemmertz (dondoca ultranarcisista mergulhada numa banheira, atendendo telefonemas, etc.), é levada por uma das criadas ao quarto que irá ocupar e, por fim, é apresentada ao vigia noturno, Eliezer Gomes. As crianças, certamente carentes de afeto materno, não desgrudam de Egrei, que tem mesmo um physique du rôle apropriado a funções como baby sitter, professora de pré-primário, etc. (Egrei é uma mulher notavelmente bonita, porém nada esfuziante. Não parece capaz de despertar extremos de nenhuma espécie. Não é propriamente sensual, nem propriamente simpática, embora essas duas qualidades lhe digam respeito. Há algo de corriqueiro, de rústico, em sua presença, sem que isso chegue a resvalar para o enfadonho. É justo, portanto, dizer que ela é uma personificação meio idealizada da mulher comum. Sua qualidade dramática, notável, tem a característica de ela sempre parecer estar ao mesmo tempo em dois lugares, contraditórios e inconciliáveis – aqui, com os pés firmemente plantados no chão, e num inacessível e inapreensível universo paralelo. Isso lhe dá uma expressão sutilmente irônica, de alguém que sabe mais do que é capaz de verbalizar, ou dialética, em que a expressão facial sempre contradiz a fala, por exemplo.)

As crianças são colocadas na cama e tudo parece se encaminhar a mais uma noite como qualquer outra na região serrana fluminense. A normalidade, contudo, é quebrada quando o telefone da casa começa a tocar (tocará várias vezes, madrugada adentro). Do outro lado da linha alguém faz ruídos estranhos mesclados a ameaças de morte. O vigia noturno diz que não é para Egrei se preocupar, que esses trotes sempre acontecem, etc. Outras coisas perturbam o ambiente ali (ou são sintomas de um ambiente em si mesmo perturbado). O menino, que hoje seria diagnosticado como hiperativo, TDAH, tem dificuldade para dormir. Sai disparando sua metralhadora de brinquedo contra a Lua, pede para andar de moto, encena um tiroteio com o vigia, Eliezer Gomes, esse com um revólver de verdade. Eliezer vai subindo o tom na brincadeira (agora uma espécie de pega-pega) até o ponto em que o menino de fato fica assustado. (Egrei também se assusta e olha para os dois com uma cara de quem está começando a desconfiar que veio trabalhar numa casa de doidos.) O menino volta para a cama. Eliezer convida Egrei para um café na cozinha e lhe diz que quando começou a trabalhar à noite sentia-se mal com frequência (angústias, etc.), mas que havia se acostumado. Que não gosta daquela casa (“a casa é bonita, mas não é amiga da gente”). Etc., etc. Paro aqui a exposição da trama, limitando-me a dizer que ela chega aos paroxismos típicos do gênero suspense/terror. É o óbvio sobre o filme. Mas, como diz o título de um conto de Borges, em que ele parodia (e eleva) H. P. Lovecraft, there are more things

Selma Egrei, ao pressentir que está num ambiente ameaçador, tem dois movimentos, simultâneos e contraditórios. Algo de seu instinto de sobrevivência entra em alerta ao mesmo tempo em que ela parece excitada com a proximidade de um perigo ainda vago, inespecífico. De modo algum ela se mostra aterrorizada, antes o contrário – no fundo parece ansiar, serena e voluptuosamente, pelo encontro com esse algo, como se o sentido pleno de sua vida tivesse íntima relação com aquela entrega autossacrificial a que parece se dirigir (a última cena do filme confirma isso). O porquê desse comportamento da nossa querida Egrei só pode ser especulado. Podemos falar em típico masoquismo feminino, ou, apelando a Nelson Rodrigues, todas mulheres gostam de apanhar, menos as neuróticas? Podemos, mas isso não abrange tudo que a situação mostrada no filme expressa/sugere. Há algo de atração sexual mal-conscientizada de Egrei, a branquinha estudante de psicologia, por Eliezer, o crioulo da estiva, matuto e mal-encarado, atração destinada a se consumar em alguma forma de violação (estupro, etc.)? Isso é tão óbvio que já virou até clichê (dentre os incontáveis clichês acerca desse tipo de casal interracial, como o da mulher branca que depois de ir para a cama com o ultraviril – e sempre ultradotado – homem negro vicia-se na coisa e não consegue se acostumar com menos). Egrei seria então um ser com aspirações espirituais semelhantes às dos cristãos primitivos que se deixavam ser devorados por leões, certos que estavam sobre a salvação e a vida eterna? É bastante possível que houvesse algo disso na personagem, mas como uma camada mais funda de seu psiquismo (ou alma, palavra mais adequada a esse contexto) – ou seja, algo sem evidência o suficiente para ser um elemento determinante quanto ao desfecho da história. Essa ambiguidade toda poderia redundar num final insatisfatório, disperso, mas a simples presença de Egrei dá uma inexplicável coesão a esses elementos heterogêneos todos. (Grandes atores têm mesmo essa presença capaz de conciliar o inconciliável e explicar o inexplicável.) Eliezer Gomes a seu modo era um ator à altura de Selma Egrei. Semelhante a ela, ele parecia sempre estar ao mesmo tempo em dois planos diferentes da realidade – firmemente plantado no mundo concreto e atento a suas ameaças (era um vigia noturno, afinal de contas), e mergulhado num inferno pessoal e intransferível que ele temia ser capaz de vergá-lo para sempre (creio que isso aconteça no final do filme). Também semelhante a Egrei nesse ponto, sua simples presença já era uma forma acabada de eloquência.


  WALTER HUGO KHOURI POR EDUARDO HAAK Posfácio de Carlos Ormond e Andrea Ormond Março de 2023 ÍNDICE Estranho Encontro (1958) Fronteiras do ...