O Desejo (1975), por Eduardo Haak

São Paulo, que de uma maneira ou outra sempre é celebrada nos filmes de Walter Hugo Khouri, em O desejo, de 1975, é apenas um lugar de onde é recomendável se fugir o quanto antes. Selma Egrei contempla a vista de uma cobertura na Rua Martins Fontes, na região central da cidade. Lilian Lemmertz comenta, “horrível, não?”. Egrei concorda, “muito”. Sim, ali está, à vista das duas, a São Paulo fuliginosa e ultrapoluída dos anos 1970. Lemmertz sugere de elas irem para o sítio, paisagem rural que talvez seja antípoda daquele lugar horrendo. Egrei acata a sugestão. As duas seguem viagem, a bordo de um MP Lafer (Lemmertz dirigindo o MP lembra o Autorretrato de Tamara de Lempicka num Bugatti verde). Duas? Na verdade três pessoas saem de São Paulo: Egrei, Lemmertz e o fantasma do marido desta, Marcelo (Fernando Amaral), morto há onze meses. A zona rural, contudo, em vez de ser o oposto da cidade distópica e degradada, será mais do mesmo: uma metáfora da estase, da paralisia existencial em que as duas (os três) se encontram.

Viúva há quase um ano, Lilian Lemmertz fala bastante do falecido marido. Confessa que o amava e odiava com a mesma intensidade. Aos sublimes momentos de integração carnal sempre se seguiam os de provocações recíprocas, agressões, etc. Marcelo (Fernando Amaral), era priápico e ostensivamente infiel, alcoólatra, depressivo, dissipador (vivia à custa da empresa da família, ganhando sem trabalhar), mas, para a danação da alma de Lemmertz, era o único que a esgotava, que a realizava como mulher. Selma Egrei, por sua vez, é um poço de niilismo: acabou de voltar de uma longa temporada em Paris e não sabe que rumo dar à própria vida. Não se interessa por nada. Desencantou-se com a política, “não era nada do que eu pensava”, com os relacionamentos amorosos, etc. Suas falas lembram as de Marcelo, o que não passa despercebido por Lemmertz. A diferença entre os dois é que Egrei ainda tem um certo viço proporcionado pela juventude, daí que sorria com certa facilidade (Lemmertz fala sobre a acentuada decadência física que acometeu o marido às vésperas da morte – perda de dentes, cabelos, etc.). Mas isso, o viço da juventude, como tudo o que existe, não deve durar muito.

Não deve durar muito. Uma coisa que estava no ar na São Paulo de 1975, quase tão palpável quanto as partículas de dióxido de enxofre que os paulistanos de então respiravam, era a ideia de decadência. Em 1975 São Paulo já era, à sua maneira, pós-industrial e “pós-moderna”. O ideário de progresso ilimitado do modernismo tinha dado ruim, era óbvio. Idem a discurseira de emancipação e autonomia do sujeito (Freud e companhia não curavam nem brotoeja, o proletariado não queria saber de revolução, mas de entrar forte na sociedade de consumo, etc.). A arte moderna, vista da perspectiva de sua saturação, não passava de uma coleção de cacoetes. A trilha sonora de O desejo é bastante eloquente sobre isso. Em vez de seus costumeiros pastiches de pós-serialismo, Rogério Duprat (que foi aluno de alguns figurões da música contemporânea – Pierre Boulez, etc. – em Darmstadt) incorre aqui em blocos sonoros quase estáticos, bastante próximos daquele minimalismo nova-iorquino de La Monte Young, Terry Riley, etc. Somam-se a isso coisas como a democratização do ensino superior (faculdades de fim de semana, um fenômeno típico dos anos 1970), a expansão do crédito imobiliário via BNH (e a consequente invasão de lugares antes exclusivos, como o Guarujá, por uma ruidosa e tolamente otimista classe média), a proliferação metastática de veículos automotores (“Fusca é que nem bunda, todo mundo tem”) e o cenário da típica esculhambação setentista está formado. Khouri ainda discorrerá em seu filme seguinte, Paixão e sombras, de 1977, sobre a decadência, dando voz mais uma vez ao contemplativo e depressivo Fernando Amaral. Depois disso, o enfastiado e ultrajante Roberto Maya entrará em cena com sua cara de coisa nenhuma como que dizendo, “acabou-se o que era doce, o negócio é passar essas vagabundas todas na cara, enquanto der, enquanto for possível”.

Por certo Walter Hugo Khouri não tinha consciência, ao rodar O desejo, de que testemunhava o epílogo de um modo de ser – homens e mulheres que exploram seus sentidos e sensações em busca de alguma transcendência, leitores de T. S. Eliot que contemplam o sol que se põe como um paciente anestesiado sobre a mesa, etc. Mas o filme capta perfeitamente esse momento de transição, esse às vésperas da queda. Depois disso, a toada de Marcelo, o alter ego khouriano, será fundamentalmente essa, passar essas vadias todas na cara enquanto der. Porque, ao que parece, nada lhe sobrou além disso. Daí o tom de autoparódia que muitos críticos veem na produção khouriana a partir dos anos 1980. Porque de fato há nesses filmes a paródia sinistra da criatura que perdeu a razão de ser, mas que, por não saber fazer outra coisa, continua incorrendo nos mesmos gestos – pulsões que se transformaram em compulsões (e  que, cada vez mais, degeneram em repulsões). A melhor expressão desse Marcelo avacalhado, decaído, talvez esteja em Convite ao prazer, de 1980. Ao mesmo tempo em que ele submete o amigo de infância Luciano (Serafim Gonzalez) a gozações sádicas e sinistras (disfarçadas de convites ao prazer), ele faz comentários irônicos sobre valores antes cultivados a sério e que na ocasião, se tanto, sobreviviam como paródia (ioga kundalini, quadros, livros, etc.). Depois de Roberto Maya, os Marcelos não passarão de caricaturas com cada vez menos consciência de que não passam de caricaturas (o yuppie predador e inexpugnável de Tarcísio Meira em Eu, de 1986, é a melhor dessas caricaturas, porque divertida em sua cafajestagem e canastrice; a pior é a de Ben Gazzara em Forever, de 1991). 

(Os anos 1980 foram divertidos enquanto prevaleceu a ideia de que o ser humano tinha caído num ridículo sem precedentes e que nada mais deveria ser levado a sério. Enquanto o holocausto nuclear não viesse, o negócio era ver O povo na TV e se esborrachar de rir com o primitivismo e a escrotice dos pobres. Ou ver o Festa baile e se esborrachar de rir com o espetáculo grotesco daqueles velhos bailando no salão do Clube Piratininga. Ou ver o Homem do Sapato Branco esbofeteando a cara de uma fulana presa em flagrante por roubo. Ou ver as empregadinhas tendo crises histéricas, desmaiando, etc., na plateia do Chacrinha. Ou ver o Goulart de Andrade mostrando os travecos injetando silicone industrial e – por que não? – rachar o bico com o negócio. Ou ver o Sid Vicious com uma camiseta nazista enfiando uma torta na cara de uma piranha de rua em Paris. As coisas começaram a perder a graça quando se decidiu que já era hora de restaurar a dignidade humana, fosse na base que fosse. Ou não?)

Voltando a falar especificamente de O desejo, creio ser justo afirmar que se trata do mais rarefeito dentre os grandes filmes de Khouri, sobretudo por causa de seu final, falho a meu ver – falho porque a ficção (filmes, livros, etc.) deve resolver seus conflitos dentro das leis que lhes são próprias, sem apelar a chaves explicativas outras (psicanalíticas, filosóficas, religiosas, políticas, etc.). O denouement de O desejo, obscuro, provavelmente simbólico, coloca o espectador naquela coisa de “o que será que o diretor quis dizer com isso?”. A indeterminação e a obscuridade abre a coisa a uma possível chave explicativa alheia ao universo ficcional, possivelmente psicanalítica (talvez sim, talvez não). A impressão que fica é de que a história não fechou, que a energia acumulada durante todo seu percurso dramático não chegou a nada ou se dispersou numa inútil e trabalhosa elucubração acerca de o que o diretor quis dizer. A cena – cena final –, de qualquer forma, é coesa e impressionante (Khouri era, afinal, um grande diretor), lembrando um daqueles pesadelos cujo sentido nos escapa, mas que nos cativam por sua expressividade terrificante.

Descontada essa falha do final, O desejo é um filme envolvente sobretudo porque nos interessa saber aonde a inquietação de seus personagens os levará. Porque, a despeito da banalidade acachapante em que estamos afogados hoje e a despeito dos papeis ultrajantes que o destino acabou por nos reservar, a despeito disso tudo nossas inquietações são as mesmas de Lilian Lemmertz, Selma Egrei e Fernando Amaral (por que nossas euforias sempre acabam em tédio, nossos desejos em indiferença, etc.). Sim, sabemos que a inquietação dos personagens de O desejo os leva a um lugar ignorado e não sabido e que provavelmente nossas inquietações nos levariam a esse mesmo e decepcionante lugar. Sim, talvez. Talvez tudo seja mesmo uma simples questão de aumentar os níveis de serotonina nas fendas sinápticas, através de um inibidor seletivo de recaptação, e, puf, adeus tédio, adeus angústia. (Sinceramente, acho a chave explicativa psiquiátrica ainda pior do que a psicanalítica. Como dizia o Millôr Fernandes, “ao psicanalista eu não vou nem amarrado, ao psiquiatra só vou amarrado”.) Creio que ver O desejo, hoje, serve para restaurar uma relativa plenitude do real que não teria como ser restaurada de outra forma (tenho falado muito sobre isso. Esse me parece mesmo ser o sentido último, teleológico, da arte ficcional). A vida tem um potencial de significado e beleza do qual é bom nos lembrarmos às vezes. E é bom simplesmente porque é bom ver a realidade não apartada de um de seus importantes aspectos (senão o mais importante). E é bom ver também as falhas, as contradições, o potencial de desagregação e caos que sempre nos assedia e ameaça. Assim é a vida, assim somos nós.


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