Paixão e Sombras (1977), por Eduardo Haak

Grandes narrativas ficcionais (e o cinema, a despeito de suas pretensões de autonomia, linguagem cinematográfica, não passa de um tipo de narrativa ficcional) são aquelas que tratam de questões humanas fundamentais. Grandes personagens são os que vivenciam e expressam, de forma dramática, essas questões. Isto posto, Paixão e sombras, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1977, é forte candidato a seu pior trabalho. Marcelo (Fernando Amaral) está num decadente estúdio de cinema (em vias de ser transformado num hipermercado), esperando a atriz, Lena (Lilian Lemmertz), com quem pretende fazer um filme. A atriz não aparece e, enquanto Marcelo fica esperando Godot, entretém-se discutindo cinema com sua assistente, Ana (Monique Lafond). Marcelo está visivelmente depauperado e deprimido, mas isso isoladamente não significa drama, de forma alguma. Paralelamente, o drama do estúdio que deve ser desativado em breve e da atriz (musa, etc.) que aparentemente deu o bolo no diretor (porque trocou o cinema pela televisão) só são dramas num sentido muito abstrato. A verdade é que histórias protagonizadas por artistas às voltas com seu métier quase nunca dão em coisa que preste. No caso de Paixão e sombras, a coisa soa como uma paródia mal conscientizada de um hipotético deus que lamentasse o universo por ele criado. A comparação faz sentido, afinal artistas são deuses à sua maneira e suas obras podem ser chamadas de universos. Quixotesco, mas qualquer pessoa que já tenha lidado com algum artista (ou candidato a) sabe que as coisas são assim. O bom é que a realidade costuma botar os Don Quixotes em seus devidos lugares com a ajuda do Sancho Pança que mais estiver à mão. E é justamente um Sancho Pança que salva Paixão e sombras de ser um fiasco total.

Buda (Carlos Bucka) é marceneiro, contra-regra, etc., no tal estúdio cinematográfico. Obeso mórbido (na terminologia atual), suarento, etc., aqui e ali chama Marcelo Quixote à realidade, “seus filmes são muito parados e não têm mulher gostosa”. Bucka foi o inolvidável Caveirinha em Elas são do baralho, Sílvio de Abreu, 1977, e o inesquecível gerente do hotel de alta rotatividade (além de intrujão, artigo 180) de Noite do desejo, Fauzi Mansur, 1973. Monique Lafond, que tem em relação a Bucka a complacência gentil e calorosa que certas beldades têm em relação a homens desajeitados, descobre que o marceneiro tem lá seus talentos artísticos. Ele desenha bem, faz umas ilustrações interessantes, quase todas de temática sadomasoquista. Marcelo e a assistente fazem um ensaio com a câmera usando Bucka como ator. Dizem que o perfil dele lembra um pouco o de Orson Welles. Até cogitam fazer um filme com ele. Mas Bucka rói a corda, diz que a mulher dele não vai gostar dessa coisa de ele virar ator, etc.

Walter Hugo Khouri, a despeito de sua grandeza, não tinha quase nenhum pendor para o cômico. Sua únicas quase comédias talvez sejam Convite ao prazer, fundamentalmente pela presença do patético doutor Luciano (Serafim Gonzalez), e Paixão e sombras enquanto o filme se detém em Carlos Bucka. No caso de Paixão e sombras a comédia tem um leve toque de slapstick, porque a presença de Bucka dá margem a isso. Contudo, pressentimos que o inolvidável Caveirinha era um ator que tinha mais a oferecer do que aqueles meros efeitos cômicos banais que se baseiam exclusivamente na exibição de obesidade (ele tentando entrar, com incrível dificuldade, num Fusca em Elas são do baralho, etc.). A presença dele oxigena Paixão e sombras quando a rarefação de Marcelo e seus supostos tormentos deixa a coisa quase irrespirável. Khouri sem dúvida percebeu isso, daí o destaque momentâneo que deu ao personagem.

É razoável dizer que Carlos Bucka teve um destino análogo ao de Victor Buono, um excepcional ator com formação shakesperiana, mas que pela implacabilidade do physique du rolê (obesidade) só interpretava tipos freaks como o rei Tut do seriado de TV Batman & Robin. Ainda que não tenha ido muito além como ator, o aquém que coube a Bucka de certa forma bastou para que, passados quase quarenta anos de sua morte, ainda nos rendamos a suas memoráveis atuações.


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