As Filhas do Fogo (1978), por Eduardo Haak

Uma parte pouco lembrada pelos comentadores de Totem e tabu, de Sigmund Freud, é aquela em que o autor discorre sobre o suposto ressentimento que os mortos nutrem pelos vivos. Freud colheu muitos exemplos dessa crença, que está na base do pavor que a humanidade sempre teve de fantasmas – sendo o fantasma (espírito, ectoplasma, etc.) um ressentido, por ver-se privado de capacidades que, se presume, apenas os vivos têm, sua atitude para com os vivos será sempre e necessariamente a do invejoso, do rancoroso reivindicador. A teoria do húngaro Szondi Lipót sobre a pretensão de nossos antepassados pesando maciça e negativamente sobre nossos destinos vem ao encontro disso que Freud falou. Jung afirma coisas análogas em Septem sermones ad mortuos, que os mortos sempre voltam de Jerusalém (e batem à nossa porta, desacorçoados) porque não encontraram por lá aquilo que procuravam. Pensei nessas coisas ao rever As filhas do fogo, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1978. Deixando de lado a discussão sobre o que realmente acontece ou o que deixa de acontecer no filme (acontecimentos psíquicos não têm como não ter essa ambiguidade, de serem existentes e inexistentes ao mesmo tempo), o fato realmente garantido é que a personagem Diana (Paola Morra) termina a história esmagada por sua ancestralidade. A floresta de cipós em que ela se vê presa no final provavelmente é a mesma que seu avô desbastou, ali na propriedade, plantando no lugar aprazíveis jardins. Há em sua ancestralidade uma mãe homossexual e suicida (Sílvia, Selma Egrei), uma irmã que morreu jovem e louca, um pai ausente (sobre quem nada sabemos exceto que cultivava hábitos bizarros, como o de atirar em árvores com uma velha pistola Mauser da Primeira Guerra). O avô, o tal que desbastou a floresta cheia de cipós, também cometeu suicídio, ao que parece. 

Diana voltou recentemente à propriedade da família, situada na serra gaúcha. É provável que desejasse, com esse regresso, jogar alguma luz na própria história, história essa cheia de pontos obscuros. Sua namorada, Ana (Rosina Malbouisson), participa da investigação mais como observadora (e sensitiva, digamos assim). Mariana (Maria Rosa), criada da casa, sabe bem mais do que a princípio dá a entender. Como quem não quer nada, afetando ares de criatura simplória, age como sólida guardiã de um limiar que não sabemos exatamente qual seja. Ela sabe que a curiosidade de Diana, por quem é bastante afeiçoada, pode levá-la a situações perigosas. Percebemos que ela joga do lado luminoso da força, embora não entendamos exatamente como e por quê. Do lado escuro (da força) está Dagmar (Karin Rodrigues), discreta megera que atualmente se dedica a gravar vozes de pessoas mortas e que foi amante de Sílvia (Selma Egrei), a mãe suicida de Diana. Também do lado escuro está o vagabundo errante interpretado pelo Serafim Gonzalez (que depois de morrer afogado num lago próximo à propriedade, isso depois de impor sua presença insidiosa à Ana, Diana e Mariana, reaparece como mestre de cerimônia do rito do solstício de verão que acontece ali, na serra gaúcha – na verdade o rito já não acontece há mais de dez anos, embora continue a acontecer).

A curiosidade frívola e juvenil de Diana por certo não merecia ser punida com um castigo tão severo, esse de ela acabar sendo arruinada pelos rancores vingativos de seus antepassados, rancores esses que sempre pesam sobre nossos destinos (Szondi). Talvez Diana não tivesse como escapar a essa fatalidade, a esse destino compulsório, sendo membro de um clã de criaturas marcadas pela tragédia. Talvez Mariana não pudesse mesmo protegê-la de coisa alguma e, no final das contas, agiu como agiu apenas para conservar intacta a fronteira entre luz e trevas (o final do filme parece sugerir isso). De qualquer forma, nos compadecemos do destino de Diana. Torcíamos para que ela vencesse as assombrações todas, jogasse luz nas coisas, tornasse claro o que antes era indeslindável, como seu avô, que construiu uma clareira no que antes era uma mata cerrada, ameaçadora, cheia de cipós (mas que, ao que parece, no final também não conseguiu vencer as escuridões todas). O impulso de conhecer é nobre e natural ao ser humano, mas nem sempre o protagonista do ato de conhecer leva a melhor (aliás, é mais do que frequente que leve a pior – Édipo que o diga).

Apesar de uma falha ou outra – Diana, sendo uma personagem tão central, mereceria uma atriz melhor do que a sofrível Paola Morra –, As filhas do fogo é um filme espantoso, coeso, implacável, sem dúvida um dos melhores realizados por Walter Hugo Khouri. Para além de sua superfície de filme de terror, há ali um tipo de narrativa semelhante ao das peças míticas de Nelson Rodrigues (Senhora dos afogados, com o tema da pessoa morta – e ressentida – que retorna, talvez seja a que mais se assemelhe). Ambos – Khouri e Nelson Rodrigues – não só eram hommes à femmes, mas entendiam mesmo desse riscado, o universo feminino. (Talvez universo seja uma palavra modesta, acanhada demais para tentar abranger o feminino. Servimo-nos dela apenas pela inexistência de outra.)


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