Em Prisioneiro do sexo, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1979, temos a primeira aparição do ator Roberto Maya no papel de Marcelo, o personagem mais constante de Khouri (além das Anas e das Berenices). Marcelo costuma ser chamado, talvez propriamente, de alter ego do diretor. Roberto Maya foi o ator que mais bem o realizou.Paulo José foi o Marcelo em As amorosas, de 1968, e deu uma interessante encarnação ao personagem, simpática, fresca, juvenil. Mas o ar perplexo e meio apatetado (de bobo da corte) de Paulo não tinha muito a ver com o clima, a ambiência, o pathos tipicamente khouriano. Wilfred Khouri foi o Marcelo em O último êxtase, de 1973 – um Marcelo também juvenil, porém arredio, birrento, irritadiço. Fernando Amaral foi o Marcelo em dois filmes, O desejo, de 1975, e Paixão e sombras, de 1977 – um Marcelo depauperado e deprimido demais. Tarcísio Meira foi o Marcelo em Eu, de 1986 – Meira era uma grande presença e fez do personagem um divertido cafajeste dionisíaco, mas nada muito além disso. Ben Gazzara foi o Marcelo em Forever, de 1991 – um saco de vento, uma caricatura num filme, no mais, caricatural. Por fim, Antônio Fagundes foi o Marcelo em Paixão perdida, de 1999 – um Marcelo inteiriço demais, oposto absoluto ao filho catatônico, também Marcelo, interpretado magnificamente pelo garoto Fausto Carmona.
Há bons e excelentes atores khourianos – Mario Benvenutti, Pedro Paulo Hatheyer, Luigi Picchi, etc. –, mas nenhum imprescindível nos filmes em que trabalharam, exceto Roberto Maya em Prisioneiro etc., Convite ao prazer, 1980, e Eros, o deus do amor, 1981. Nesses filmes Maya personifica magistralmente o vilão, aquele tipo que apela a nosso lado escuro, brutal, não empático. “Se ninguém estivesse vendo, se a polícia não tivesse como pôr as mãos em mim, eu não faria exatamente as mesmas coisas que esse crápula faz?”, é a pergunta que um grande vilão planta em nossa alma. Em última instância ele acena com o se Deus não existe tudo é permitido dostoievskiano, joga nesse limite. Ecoa a serpente nos persuadindo de que se comermos da árvore do conhecimento do bem e do mal seremos como Deus – ou seja, teremos a liberdade perfeita. Para que seu apelo tenha efetividade, ressoe em nosso próprio lado escuro, a personificação exige sutileza e, sobretudo, uma complexa composição de luzes e sombras. Um mau vilão – grotesco, ordinário, unidimensional, etc. – seria facilmente refutado e rejeitado por nossa consciência. Roberto Maya é chiaroscuro e nisso está seu poder de persuasão.
Há nos vilões de Maya um forte componente aristocrático. Tudo nele nos informa – talvez, sobretudo, o que percebemos subliminarmente – que ele não é um qualquer, que é uma pessoa bem educada, que estudou no Colégio Marista Arquidiocesano nos anos 1940, etc. Seu jeito de falar, sem cerimônia, predominantemente coloquial culto, irônico, quase insultuoso, é tremendamente aristocrático. Como dizia o Paulo Francis, aristocratas não eufemizam quando falam (fala pernóstica é coisa de gentinha que quer dar uma de sofisticada). Além de não eufemizar nada, Maya também não se explica nem se justifica (“Boldness has genius, power and magic in it. Never contradict. Never explain. Never apologise”).
Ao mesmo tempo em que não é um qualquer, Maya é insultuoso até a raiz. Seus bons modos estão mesclados a péssimos modos. Numa das primeiras cenas de Prisioneiro do sexo, ele desdenhosamente chuta um balde de leite para anunciar sua chegada ao caseiro da chácara onde mora. Noutro momento, no escritório, despe à força uma secretária e mergulha o rosto em suas partes íntimas. Noutro, durante uma orgia, despeja um balde de gelo dentro da calcinha de uma fulana lá. E por aí vai. Comentaristas ingênuos de Walter Hugo Khouri costumar usar o clichê crise existencial para explicar a motivação de seus personagens. Na verdade os personagens khourianos mais representativos são aqueles que, autorizados pela própria ousadia, vão pondo à prova tudo que existe e constatando a falta de integridade de tudo. Durante o percurso, experimentam alguma volúpia e alguma excitação nesse desmascaramento cruel das coisas. Em O prisioneiro do sexo isso aparece de maneira mais aguda do que em qualquer outro filme de WHK.
Marcelo, dono de uma empresa de engenharia cheia de contratos com o governo, etc., propõe à mulher, Ana (Sandra Bréa), que eles vivam sob o mesmo teto com uma de suas amantes. Passado o choque inicial, a situação logo se acomoda. As duas mais se entendem do que deixam de se entender. Talvez para desafiar a nova paz-pasmaceira doméstica, Marcelo espreita e quase estupra uma amiga que frequenta a casa, Kate Lyra, uma boboca metida a sex lib. Depois, supõe-se dominado por um irrefreável desejo sexual pela própria filha, Berenice (Nicole Puzzi). Como nada nesse mundo tem mesmo, aparentemente, qualquer integridade ou limite, Berenice parece corresponder aos desejos incestuosos do pai. A história termina nesse ponto, mas sabemos que Marcelo não cessará suas condutas demolidoras, ao menos até que encontre (se é que vai encontrar) um motivo cabal para o fazer. Deus, com sua ausência presente, com seus símbolos indeslindáveis (a árvore ascensional que Gabriele Tinti contempla no final de Noite vazia) e com sua estranha insistência em preservar a liberdade humana (uma mixórdia que, no mais das vezes, nos traz mais problemas do que qualquer outra coisa), é a última instância com que todo grande canalha, todo grande blasfemador tenta, no fundo, dialogar. Marcelo talvez não faça outra coisa além de tentar arrancar respostas dessa última instância, por meio do ultraje e do insulto.
Prisioneiro do sexo, dos três filmes de Roberto Maya, é o mais rudimentar, às vezes parecendo um rascunho tosco daquilo que Khouri realizou com grande brilho e nitidez em seu filme seguinte, Convite ao prazer. Mas até por ser tosco, por usar do mau gosto declarado em sua feitura (e por ser conduzido por um grande vilão), o filme impacta o espectador não só por sua discursividade dramática, mas também pelas vísceras. O repulsivo, quando operado por um grande artista, expressa uma tensão moral que não teria como ser atingida de outra forma. Ainda que sintamos, aqui e ali, certa falta do Walter Hugo Khouri esteta e certa falta do joie du vivre khouriano em Prisioneiro etc., não temos dúvida de que ele realizou, ali, um filme único por sua explicitude e agudeza.
Prisioneiro do Sexo (1979), por Eduardo Haak
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