Convite ao Prazer (1980), por Eduardo Haak

Há pelo menos quatro personagens que, num momento ou outro, protagonizam Convite ao prazer, filme de Walter Hugo Khouri de 1980. Além de Marcelo (Roberto Maya), o protagonista óbvio, vemos o centro de interesse dramático pender bastante para Luciano, um dentista remediado interpretado magistralmente por Serafim Gonzalez. Anita (Helena Ramos), a mulher suburbana de Luciano, extremamente ciosa sobre aquilo tudo que supostamente lhe pertence, também tem momentos de grande centralidade no filme. Por fim, dona Eugênia (Linda Gay), mãe de Marcelo, comentadora desalentada dos descaminhos comuns da espécie humana (sempre os mesmos, pois, como bem sabemos, não há nada de novo sob o sol, etc.). Sua cena, única, é cheia de graça e vivacidade, sendo a expressão de Linda alguma coisa entre irônica, furibunda e explicitamente cômica (fica sempre muito engraçado alguém dizer sem atenuações aquilo que as coisas realmente são). Sua fala principal, aliás, não deixa de ser um comentário irônico sobre o próprio Walter Hugo Khouri e o suposto tormento existencial de seus personagens mais típicos, “que existencial coisa nenhuma, não me venha com essas coisas, isso é sem-vergonhice, malandragem de homem, eles querem é pegar essas vagabundas todas”.

Talvez seja próprio dizer que dos quatro protagonistas o que mais rouba a cena é Luciano. Seu pathos tem mais urgência e sofreguidão do que os dos outros. A despeito disso, Luciano é uma criatura irredimível por ser um compêndio de falta de virtudes – é medroso (come na mão da mulher, uma viborazinha de túmulo de faraó), invejoso, recalcado e, sobretudo, burro. Lembra bastante Polônio, o personagem de Hamlet, William Shakespeare. (Só ri quando o chefe ri, etc.) Lembra também alguns daqueles nossos vizinhos de prédio, fofoqueiros e maledicentes, “fulano vive atrasando o condomínio e compra carro zero todo ano”, etc. Sua intensa admiração invejosa por Marcelo vem de décadas (ambos são amigos desde o tempo da escola). Ele tenta ser, com seus parcos recursos, um Marcelo, mas por não possuir as potências todas do velho amigo-inimigo (muito dinheiro e as acomodações todas que o dinheiro proporciona, uma vitalidade talvez oriunda da prática da ioga kundalini, expertise e traquejo social, etc.), Luciano acaba não passando de um Marcelo falhado. É tragicamente engraçado por isso (e também por Serafim Gonzalez ser um ator de viés fortemente cômico).

A história transcorre a partir de um encontro quase fortuito entre Marcelo e Luciano. Marcelo tem um problema num dente e vai para o consultório de Luciano, já num horário off duty. Luciano demora para atender a porta, pois está abatendo uma lebre (v. Carlos Imperial) em sua cadeira de trabalho (a lebre é a Aldine Muller no esplendor de seus vinte e seis anos). Dente consertado (e a lebre abatida também por Marcelo), os dois velhos amigos saem para beber e colocar os papos em dia. Fazia quatro anos desde o último encontro entre ambos. Marcelo diz que se casou de novo. Luciano pergunta, “e como é sua nova mulher?”. Marcelo diz, cheio de nonchalance, afrouxando a gravata, “melhor do que a outra”. Luciano, “mas dessa agora você gosta, né?”. Marcelo, “gosto muito... detesto muito...”. O encontro se encerra com um convite de Marcelo para que Luciano vá na tarde seguinte a uma cobertura que ele tem para encontros com mulheres (para quem tem curiosidade sobre locações, o prédio, onde foram feitas algumas cenas externas, fica na Alameda Ministro Rocha Azevedo, 1357).

Qual interesse pode ter Marcelo em privar da companhia de um amigo que sabe ser um invejoso, um compêndio de falta de virtudes? Sabemos, através de um diálogo de Marcelo com sua mulher, Ana (Sandra Breá), que ele tem pavor de que mexam na sua boca, mas que tratar os dentes com Luciano, ainda que ele suspeite que o amigo não seja um dentista muito capaz, faz a coisa parecer uma brincadeira. É essa a única dependência conscientizada de Marcelo em relação ao velho amigo, embora talvez haja outras. Indo ao ponto que me parece fundamental, Marcelo cumpre em relação a Luciano uma lei não escrita da narratologia (e, também, uma lei não escrita da vida), mas que é encontrada em toda obra ficcional realmente grande – se um idiota é colocado em cena, deve ser punido com rigor (um corolário dessa afirmação é que o que constitui a ficção medíocre, na quase totalidade dos casos, é a complacência com o personagem tolo, inepto). Marcelo não faz outra coisa com Luciano além de dar corda para que ele se enforque. Sabe que o amigo, excitado com o mulheril e com uns uísques a mais na cuca, vai render um espetáculo grotesco e, quiçá, muito engraçado. (O que de fato ocorre.) Parece mesquinho alguém se divertir explorando o ridículo e as fraquezas de um semelhante, mas há mesmo algo de justiça cósmica no empreendimento. Shakespeare pune o palerma do Polônio fazendo Hamlet atravessá-lo com uma espada. Gustave Flaubert pune o cretino do Charles Bovary fazendo Emma plantar-lhe monumentais chifres na testa. As mulheres de Nelson Rodrigues traem os mentecaptos de seus maridos alegando eles que eles suam nas mãos e usam camisetas de times de futebol. E por aí vai. Luciano, por ser medroso e invejoso, por tentar agir como alguém que ele não pode ser, por ter uma autoconsciência limitada e, sobretudo, entorpecida, merece plenamente o relho que leva no lombo.

Convite ao prazer é, dos filmes de Khouri, o que tem os personagens mais plenamente realizados. O enredamento entre eles é esplêndido. Todos agem de acordo com razões pessoais mais do que legítimas, mas sabem que, para além disso, há a estrutura da realidade pesando sobre todos, daí que ninguém opte por nenhum tipo de enclausuramento narcísico (que maravilha que o doutor Luciano queime tudo até a última ponta como o imbecil que ele é; lembro-me do Nelson Rodrigues dizendo que o ator Jorge Dória era um ser varado de luz, como um santo de vitral quando era um péssimo ator; e que, ao tornar-se um bom ator, via aprendizado, disciplina, autoconsciência, etc., ele perdeu toda graça e luminescência que possuía). Voltando ao narcisismo, até Marcelo, que declaradamente se interessa apenas por si e suas obsessões, de acordo com a narração em off da abertura de Eros, o deus do amor, em Convite experimenta esse peso limitador do real, já que esse é o filme em que o propalado alter ego de Khouri é mais desafiado, tanto pela consciência de que as situações de gozo de que ele pode usufruir no fundo são bem modestas quanto pelos questionamentos quase diretos que lhe são dirigidos, “que existencial que nada, eles querem é pegar essas vagabundas todas”, ou mesmo questionamentos diretos, como quando, no final, o medíocre Luciano enfim demonstra ter algum tutano sob camadas e camadas de covardia e desfere uma sequência de bofetadas no amigo-inimigo. Embora não pareça à primeira vista, Convite ao prazer é o melhor filme de Walter Hugo Khouri, por ser o mais maduro, o mais justo e proporcionado, o que mais presta mais contas ao real (e, na minha opinião, o mais prazeroso de se ver).


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