Eros, o Deus do Amor (1981), por Eduardo Haak

“Que existencial coisa nenhuma, não me venha com essas coisas, isso é sem-vergonhice, malandragem de homem, eles querem é pegar essas vagabundas todas, é farra, vadiagem, variação, é uma a cada dia”. Assim sentencia dona Eugênia (Linda Gay), mãe de Marcelo (Roberto Maya) em Convite ao prazer, filme de Walter Hugo Khouri imediatamente anterior a Eros, o deus do amor, este de 1981. Conhecido principalmente por ser um exercício cinematográfico original e ousado, dado que o filme todo é rodado em câmera subjetiva – o espectador vê apenas o que o protagonista vê –, Eros acaba não indo muito além da experimentação formal, mais ou menos bem sucedida. A razão de sua debilidade é simples de entender. Comparando o comparável, Convite é dos maiores filmes de Khouri fundamentalmente pela presença de personagens fortes, inteiriços, como o de dona Eugênia, personagens capazes de dizer cabalmente o que as coisas são (porque capazes de ser o que são de forma plena). Eros peca justamente nesse ponto, sendo uma espécie de coletânea, um pot-pourri dessas vagabundas todas, evocadas fragmentariamente em momentos particularmente prosaicos, quando não francamente aborrecidos. A ex-amante (Norma Bengell) que vem pedir (exigir) dinheiro a Marcelo e que, antes disposta a lhe dizer um monte de verdades, ao ver o valor preenchido no cheque, limita-se a lhe rogar umas pragas. A ex particularmente jovem (Nicole Puzzi) que se entrega a um falatório boboca, demagógico, pseudoindignado, sobre a conquista da lua, “é imoral gastar bilhões de dólares em missões espaciais enquanto tem gente morrendo de fome no mundo”, etc. A ex com a profissão inusitada de astrônoma (Maria Cláudia) sempre a proferir seu niilismo científico de almanaque e se achando muito sofisticada por isso, “o sol antes de morrer se expandirá até engolir a Terra”, etc. As duas prostitutas debochadas (Patrícia Scalvi e Monique Lafond) cujo comportamento é perfeitamente definido pela frase de Maquiavel, “o populacho é atrevido, porém é fraco”. A ex (Selma Egrei) dada a escrever cartas intermináveis, cheias de clichês. A filha (Lala Deheinzelin), que agora se meteu a querer fazer justiça social, “gente passando fome no mundo”, etc. A esposa (Lilian Lemmertz) reclamona e rancorosa que tenta inutilmente discutir com Marcelo os termos de um divórcio sempre adiado por ele. A amante atual (Denise Dumont), que até que consegue perceber que Marcelo não presta e até que lhe diz umas coisas razoáveis, considerando que é uma mulher bastante jovem. O que ela diz e faz, de qualquer modo, não chega a ser suficiente. A mãe (Dina Sfat), a única do pot-pourri em que podemos vislumbrar integridade e uma ação dramática completa (ainda que ela também apareça de modo fragmentário e ainda que sua ação dramática completa esteja bastante compactada numa série de símbolos – o Pico das Prateleiras (Itatiaia), o trono de pedra, todos eles totens recorrentes na filmografia khouriana). 

Por um lado as cenas do pot-pourri são boas em si mesmas. Lemmertz especialmente dá um show como a esposa magoada, sempre querendo ir à forra. Por outro, a fragmentariedade tira qualquer possibilidade de fato dramática dessas cenas. Tudo acaba na mesma vala comum de ex-afetos, no mesmo balaio de mulheres chatas fazendo suas reclamações chatas e dizendo suas banalidades de sempre. (Exceção para as mulheres pertencentes ao passado profundo de Marcelo, essas com sua graça e inteireza preservadas de alguma forma, talvez por meio de idealizações. Além da mãe (Sfat), a combatente da Coluna Prestes (Renée de Vielmond), que um Marcelo de cinco anos de idade contempla embevecido. A professora de inglês (Kate Lyra), que o inicia sexualmente no início da puberdade. Outra professora, essa de filosofia (Dorothée Marie Bouvyer), que lê O banquete, de Platão, olhando diretamente para ele.) Não me lembro qual filósofo disse, discorrendo sobre a natureza do tempo, que o agora é uma abstração. Que, amputados do devir, os momentos isolados não significam coisa alguma. Parece-me certo e parece-me que se aplica à fragilidade de Eros. Mesmo a única coisa que há de contínua no filme – a presença de Marcelo – é abalada por essas profusões inconexas todas. A profissão de fé que ele enuncia em off na abertura do filme, enquanto são mostradas imagens de São Paulo, não passa de um falatório grandiloquente, narcisista e meio mal-ajambrado (cheio de metáforas surradas, turbilhão, etc.), que de modo algum lhe dá unidade ontológica (quando muito uma unidadezinha tática, de pegador dessas vagabundas todas).

Com alguma boa vontade podemos ver Eros como uma comédia cruel e farsesca, embora o clima do filme de modo algum favoreça que o apreciemos assim. Uma talvez excessiva estetização das cenas acaba simulando uma densidade que tanto as vagabundas todas quanto o Marcelo de modo algum possuem (Eu te amo, do Arnaldo Jabor, padece do mesmo defeito). Em vez de rirmos de Eros (considerando que há uma comédia latente ali), ficamos sexualmente excitados com ele. Como poderia ser diferente, se através do filme entramos no Victoria Pub (Alameda Lorena, 1604) numa noite qualquer de 1981 e logo vemos a Christiane Torloni com um vestido branco olhando diretamente para nós com uma cara de “que tal irmos agora mesmo para um lugar mais discreto?”?


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