Amor Estranho Amor (1982), por Eduardo Haak

Há muitos elementos de comédia burlesca, de chanchada, em Amor estranho amor, filme de Walter Hugo Khouri de 1982, embora o efeito desses elementos todos não seja propriamente cômico (se você rir é por conta e risco seu). Isso ocorre fundamentalmente porque nenhum ator catalisa tais elementos a ponto de explicitar a comédia (e essa certamente era a intenção de Khouri). Rubens Ewald Filho – que era, vejam só, um ator de considerável talento – está quase engraçado no papel de um dos aspones do Tarcísio Meira. Mauro Mendonça, idem, quase engraçado fazendo um mineiro quase estereotipado – suspicaz, arredio, etc. Xuxa Meneghel, também, quase engraçada fazendo uma garota debochada, calorosa, assaz primitiva, que foi vendida ao bordel de luxo (onde história toda se passa) para ser dada, fantasiada de coelhinha, para o tal mineiro desconfiado, que é um figurão (político, etc.).

Nenhum ator no filme, igualmente, explicita muito o drama. Vera Fischer é quase dramática como a prostituta preferida do figurão Tarcísio Meira (preferida sabe-se lá até quando, já que essa posição vem sendo ameaçada por circunstâncias várias, carnes novas no pedaço, etc.). No mais, seus quase dramas são problemas de ordem doméstica, relacionados às promessas vagas de Meira (como sabe que provavelmente ele não as cumprirá, Vera deu entrada, com as próprias economias, numa casinha no Paraíso, bairro paulistano onde, aliás, Walter Hugo Khouri nasceu). Não há também maiores dramas com Hugo, seu filho pré-adolescente, que apareceu repentinamente ali no bordel, levado pela avó, mãe de Vera, que escreveu à filha uma carta reclamando de falta de dinheiro, etc. Walter Foster, que interpreta Hugo quando sexagenário (o jovem é interpretado por Marcelo Ribeiro), visitando a casa onde era o rendez-vous, agora vazia, evocando o que se passou ali quarenta e cinco anos antes, parece antes embevecido do que melancólico. Sim, e por que deveria ser diferente? O garoto de doze anos que ele foi quase meio século antes soube ver (e conservar na memória) o que havia de cálido e vibrante numa realidade que, se não era propriamente atroz, era esculhambada à beça (mãe prostituída, negociatas políticas entre paulistas e mineiros firmadas num bordel, etc.). Ainda que ele, Hugo, não tivesse como perceber e entender, espreitando frestas, tudo que se passava naquele lugar, o registro que ficou foi sua visão amorosa e deslumbrada daquelas coisas – basicamente, do sexo e seu apelo avassalador, ainda mais para um rapaz às vésperas de entrar na adolescência. O filme todo tem esse tom. Nietzsche (Frederico Nichi, como dizia o Homem do Sapato Branco) chamaria o tom de dionisíaco. Nietzsche estaria certo. Charles Sanders Pierce falaria em primeridade, nossa primeira apreensão das coisas, ainda plenas (e varadas de luz, como dizia Nelson Rodrigues), e também estaria certo. Jung falaria em plenitude no lugar de perfeição (a integração do self tende ao pleno, não ao perfeito). E por aí vai.

Sobre a polêmica que sempre cercou Amor estranho amor, se foi ou não pertinente colocar um garoto de doze anos numa situação de intimidade sexual (com Xuxa e, depois, Vera Fischer), trata-se de algo que corre à margem do que é substancial na história. O tema, a iniciação sexual de um rapaz por uma mulher mais velha (o que nem é propriamente o caso em Amor estranho amor, dado que Xuxa também era, basicamente, uma adolescente), estava longe de ser novidade em 1982. Khouri expôs uma situação quase idêntica em Eros, o deus do amor, seu filme anterior, com o mesmo Marcelo Ribeiro iniciado por sua professora de inglês, Kate Lyra, e a coisa não suscitou polêmica alguma. Em Lição de amor, de Eduardo Escorel, filme baseado em Amar, verbo intransitivo, de Mario de Andrade, Lilian Lemmertz tira a virgindade de um rapazote, igualmente sem suscitar polêmicas. Deixando de lado, portanto, essa discussão marginal e provinciana, o fato é que negar ao jovem Hugo a consumação carnal, naquele contexto, seria uma escolha mesquinha. Xuxa Meneghel, um animalzinho vibrante e depravado de quinze anos, tinha seus motivos, e pouco nobres, para seduzir o garoto – queria afrontar Vera Fischer, a preferida de Tarcísio Meira. A despeito disso, achou o garoto bonitinho e não teve dúvida, crau nele. Pouco importa os motivos da Xuxa, importa que ela deu a Hugo a oportunidade de adentrar essa dimensão tão central na espécie humana, o sexo (sexo, essa abertura ao contato através do qual, além de transcendermos os limites de nossa corporalidade – a situação de imanência em nós mesmos nos é intolerável –, nos coloca em presença do outro em sua plenitude). A experiência foi altamente estruturadora para o garoto – o ar embevecido do Hugo sexagenário que o diga. O episódio ambíguo com a mãe, Vera, embora mais espinhoso por tangenciar o incesto, teve sua lógica edipiana: os elementos de paixão erótica entre mãe e filho devem sublimar-se em desvelo e acolhimento, sim, a coisa vai por aí, embora eventuais tropeços aconteçam (e não se deva dar maior importância a eventuais tropeços).

Falei em elementos de comédia burlesca no primeiro parágrafo, elementos esses que não concorrem para dar a Amor estranho amor um tom cômico. Embora isso esteja certo, o filme não deixa de ser, a rigor, uma comédia, dado que ele culmina num rito de integração – através da iniciação sexual, Hugo é integrado ao mundo dos adultos, ao mundo das mulheres, à humanidade no que ela tem de mais substancial, etc. É uma pena que não só Amor estranho amor, mas esse gênero ficcional, iniciação, tenha acabado marginalizado por moralismos dos mais diversos matizes. Impossível pensar em um filme tão legal e tão divertido quanto Private lessons, Alan Myerson, 1981, sendo produzido hoje. Idem o lindamente idílico Summer of 42, Robert Mulligan, 1971. Creio que até Dekalog 6, Krzysztof Kieślowski, 1988, se feito hoje causaria mal-estar entre fadas sensatas, lacradores e canceladores (chamariam o filme de misógino, por celebrar o suposto triunfo de um jovem espreitador). Resta-nos o consolo de que nada que é artificioso prevalece por muito tempo sobre o que é vívido, pulsante, verdadeiro. Quando essa loucura toda passar, Amor estranho amor será visto simplesmente como o que ele é – um memorável retrato da divina comédia humana – e o gênero iniciação voltará a ser o que sempre foi: uma inesgotável fonte de deleites.


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