Vera Fischer (Ana) não está boa da cabeça em Amor voraz, filme que Walter Hugo Khouri dirigiu em 1984. Encontra-se recolhida numa casa de campo, sob a tutela de uma prima, Márcia Rodrigues (Sílvia), e de uma quase adolescente Bianca Byington (Júlia), entediada, sarcástica, conhecedora de alguns rudimentos de enfermagem. Vem sendo tratada clinicamente por uma terapeuta reichiana, Cléia (interpretada pela insossa Lucinha Lins), que lhe prometeu dissolver os encouraçamentos musculares todos, via massagens e banhos de cachoeira, e que vem insistindo para que Ana não tome mais nenhum medicamento (antipsicóticos, ansiolíticos, etc.).Num passeio pela propriedade com Cléia, Ana vê pela primeira vez um homem (Marcelo Picchi) que emerge da corrente d’água que passa por dentro de uma antiga e desativada fundição de ferro. Acolherá o sujeito e estabelecerá com ele uma suposta comunicação telepática, através da qual será informada de que o sujeito é um extraterrestre; que ele vem de um planeta agonizante, em vias de extinção; que ele viajou à Terra através da luz, desmaterializado. Para as outras, Sílvia e Júlia, ele não passa de um aproveitador dando uma de surdo-mudo. Sílvia não tem dúvida de que Ana está novamente num surto psicótico. Júlia vai até o semiesconderijo onde está o suposto extraterrestre galã e lhe desfere uma séria de bofetadas. O sujeito, então, não mais se comunica com Ana. A irmã de Ana, Mariana (Cornélia Herr), aparece na casa. Como Ana, possui extensa ficha como paciente psiquiátrica (em matéria de loucura, um raio sempre cai duas vezes num mesmo local – família, no caso). O sujeito informa Mariana – telepaticamente – que precisa partir. Ana, que está apaixonada por ele, vivencia a coisa como drama romântico – finalmente encontrei o amor da minha vida, mas ele precisa ir embora, etc.
Esse tipo de história normalmente obedece ao esquema “fulano obtém um conhecimento privilegiado qualquer tido como extravagante demais pelo senso comum; cai em descrédito, ostracismo, etc., até que prova que as tais extravagâncias não eram só coisa da cabeça dele; é reintegrado ao mundo na posição prestigiada de visionário, profeta, etc.”. Khouri não vai por esse caminho óbvio. O destino de Ana em Amor voraz é trágico, no final das contas. Não só porque, obviamente, ela perdeu o senso do que é real, pirou e precisa urgentemente de uns tarjas pretas (idem Mariana, sua irmã). O destino de Ana é trágico porque o episódio provavelmente mais significativo de sua vida (paixão, etc.) não aconteceu de fato.
Amor voraz talvez seja o filme visualmente mais esplêndido de Walter Hugo Khouri. Todos atores estão ótimos, Vera Fischer em especial, impressionante em sua variedade de matizes e intensidades (além de absurdamente bonita, no apogeu dos trinta e dois anos). Mas talvez o grande feito é que em nenhum momento o filme escapa das mãos de Khouri, sendo que seus materiais são altamente escorregadios – telepatia, crença em extraterrestres, etc. WHK sabia que a régua com que essas coisas todas têm de ser medidas é o senso do real e assim o fez, sem qualquer concessão ou hesitação. Ao mesmo tempo ele preservou a plenitude alcançada por Ana/Vera Fischer em seu delírio, porque sem dúvida havia ali alguma forma de verdade e de beleza. Um artista menos capaz, um zé-mané qualquer amputaria um desses polos e resolveria a história tomando partido ou da loucura ou da razão. Khouri mantém os dois termos dialeticamente tensionados, porque não há qualquer possibilidade de síntese ali. Ele sabia que a realidade funciona assim, que é feita em larga medida de contradições que não podem ser resolvidas. Walter Hugo Khouri não era um zé-mané – era gente grande, como poucas há no cinema.
Amor Voraz (1984), por Eduardo Haak
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