Marcelo (Tarcísio Meira) vem passando os dias que antecedem o ano-novo, presumivelmente o de 1985 para 1986, na companhia de duas escort girls, Nicole Puzzi e Monique Lafond. Aos cinquenta anos, raiz de ginseng e vitaminas várias no desjejum talvez lhe garantam uma perfórmance satisfatória, com elas e com quaisquer outras. Quaisquer outras, todas outras – Marcelo sabe que não há tempo a perder, o joie de vivre não pode ser adiado nessa idade. A máquina ainda está funcionando razoavelmente bem. O dinheiro abunda (Moacyr Deriquém, com sua cara de João Bobo de sempre, dirá a Marcelo numa festa naquela noite mesmo que pelo jeito ainda dá pra se ganhar dinheiro nesse país. Marcelo desconversará. Deriquém, admirado e babando de inveja, arrematará, “pra quem tem competência, dá”). Os anos 1980 e seus excessos, seus apelos ao desmedido estão no ar, volatizados e atmosféricos, o que se vê tanto na ordem que Marcelo dará a um subordinado antes de viajar para a praia com Nicole e Monique, “compre tudo” (fusões e aquisições), como quando ele vai com as duas numa loja da Zoomp e diz, “podem levar tudo, é presente de Natal”.A convivência com as duas, aliás, chegou a um ponto de considerável intimidade, tanto é que elas já se sentem à vontade para brincarem de ser arrogantes com subalternos (empregadas, etc.) e de fazerem comentários debochados sobre a fixação que Marcelo tem pela filha Berenice (Bia Seidl). Na praia levarão uma ducha de água fria quanto a essa suposta intimidade, ao serem mudadas para um quarto pior quando lá chegam Berenice e uma amiga, Beatriz (Christiane Torloni). Estrilarão um pouco, sobretudo com o comportamento esnobe de uma criada para com elas, mas logo se recolherão humildemente à própria insignificância. O que não acontecerá com Diana (Monique Evans), outra escort girl (ou coisa assemelhada) que Marcelo arrebatou na festa (Moacyr Deriquém, etc.) e que mandou trazer para a praia de helicóptero. Ao se perceber sobrando no meio daquele mulheril todo (Nicole, Lafond, Torloni, Seidl, etc.), Evans tem um chilique, xinga Marcelo de veado, etc. Marcelo ordena, com aquela voz estentórea de “Independência... ou morte!” que era o dó de peito do Tarcísio Meira, “Tirem essa mulher daqui!”. Chama o helicóptero de volta e despacha Evans. Aproveita e despacha também Nicole e Lafond, pois há uma nova bola da vez no pedaço.
A bola da vez é Beatriz (Torloni), que Marcelo chegou a cogitar que fosse lésbica (o visual meio Simone em 1985, macacão branco, etc., podia de fato sugerir isso). Mas Beatriz, que não é lésbica, está apaixonada por outro sujeito e a coisa com Marcelo fica apenas em longos (e aprazíveis) papos. Ela, que é psicoterapeuta, explica para Marcelo como funciona o teste de Szondi (o controverso teste das carinhas, em que o paciente escolhe a foto do rosto que mais lhe causa aversão, escolha essa que dará uma pista de qual patologia psíquica ele padece). A coisa acaba virando uma espécie de entrevista com Marcelo, em que ele expressa suas mais sinceras opiniões sobre tudo. “Política, como é feita hoje, é coisa de gentalha, atividade de segunda categoria”, ele diz. Diz sentir pena dos jovens, por causa do mundo em que eles serão obrigados a viver num futuro não muito distante, “as coisas cada vez mais serão niveladas por baixo, será o fim de tudo, definitivo”.
Beatriz, que não estava conseguindo falar com o namorado, finalmente consegue lhe fazer uma chamada telefônica. Parte às pressas, deixando Marcelo apenas na companhia da filha, Berenice, por quem ele tem a tal fixação que foi alvo do deboche de Nicole e Lafond, “toda mulher no fundo curte um incestozinho com o papai”, disse Nicole na ocasião, narrando um episódio mezzo incestuoso da própria lavra. O incesto é uma prerrogativa dos deuses, como bem disse C. G. Jung, embora isso não iniba Marcelo (tampouco iniba Berenice). O par pai/filha é formado, no que presumimos que seja a consumação derradeira, final, dos impulsos priápicos de Marcelo (derradeira por tudo que está implicado numa relação dessa espécie). O casal exibe-se em público, numa festa, sugerindo ser um casal mesmo. Mas não demora muito e Marcelo detecta, na tal festa, uma potencial presa. Mira no alvo, etc. A filha-amante será trocada pela tal nova presa. Presa essa que depois será trocada por outra, e essa por outra, e essa por outra, etc. Fusões e aquisições. Enquanto não chega o fim de tudo. O cabal. O definitivo.
Eu (1986), por Eduardo Haak
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