Forever (1991), por Eduardo Haak

Marcelo está morto, devidamente fotografado pela polícia científica em sua cama (o tal móvel metafísico onde nascemos, amamos e morremos – birth, copulation and death, that´s all, como disse T. S. Eliot), em seu apartamento (dessa vez montado num dos pavimentos do prédio da Fundação Cásper Líbero, Avenida Paulista, 900), apartamento grande o bastante para que Marcelo (Ben Gazzara) pratique arco e flecha dentro dele. A causa mortis foi um colapso cardíaco, ocorrido durante um intercurso sexual (nada mais Marcelo do que morrer desse jeito). Em se tratando de Marcelo e seu mundo (e nada mais), ali estão as pencas de mulheres, a filha Berenice (Eva Grimaldi/Ana Paula Arósio), dileta entre tantas, a ex rancorosa, Cristina (Vera Fischer), etc. Ben Gazzara é caricatural ao extremo, parece que está posando o tempo todo para uma foto still de cinema, aquelas detestáveis fotografias, geralmente usadas em cartazes de filmes, em que os atores fingem estar executando alguma ação dramática. Ainda que seja filho de sicilianos, Gazzara é nova-iorquino. Não basta ser latino (e latino numas, como é o caso) para ser Marcelo Rondi – a cafajestagem dionisíaca à brasileira exige uma calibragem exata da qual apenas atores brasileiros são capazes.

Descontadas as imensas limitações de Forever, que Khouri dirigiu em algum momento entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990 (seu lançamento ocorreu em 1991), o filme acerta no alvo ao mostrar como a presença de certas pessoas é, paradoxalmente, potencializada pela ausência (morte, no caso). Os argentinos dizem que Carlos Gardel, que morreu em 1935, continua cantando – e está cantando cada vez melhor. Marcelo, depois de morto, é escrutinado pela filha Berenice através de objetos deixados por ele – cartas, anotações, slides, etc. O apartamento na Paulista é impregnado de Marcelo. Certas recordações de Berenice, embora possivelmente fantasiosas e nada factuais (como a da relação incestuosa), dão testemunho da aguda presença do ausente. No outro filme de Khouri em que Marcelo morre, O desejo, de 1975, essa presença potencializada pela ausência não ocorre porque Lilian Lemmertz tinha presença a dar com o pau e porque, de certa forma e num certo nível, ela encarna o marido morto.

Forever não é propriamente desagradável de se ver. A caricatura aqui e ali é divertida e a estética oitentista tardia, publicitária, faz do filme um curioso retrato de época, como se diz. Eva Grimaldi não era boa atriz e não era propriamente bonita (tinha meio pinta de atriz pornô da segunda divisão), mas acaba combinando com esse estranho mundo gestado por certas coproduções (Brasil e Itália, no caso). Talvez, paradoxalmente, o maior problema de Forever é que havia um diretor de imenso talento – Khouri – com a mão no leme, tentando fazer o que fosse possível com o material sofrível de que dispunha. Pra piorar tudo, a história era uma reflexão sobre a morte, algo que exige mais do que as caras e bocas da Eva Grimaldi e a canastrice do Ben Gazzara. A coisa poderia ter ficado realmente catastrófica, mas Khouri acabou conseguindo, de alguma forma, impor-se. O que era pra ter sido simplesmente um filme caricato com maus atores (ou, no mínimo, mal elencados) elevou-se, apesar dos pesares, ao patamar de um filme reflexivo sobre a presença potencializada pela ausência.

Qualquer afirmação pretensamente cabal sobre a morte está fadada a ser temerária ou dogmática. Khouri sabia que a única coisa certa a esse respeito é a incerteza. Contudo, não é impossível perceber no conjunto de encarnações de Marcelo, conjunto esse contemplado como uma simultaneidade de tempos não sequenciados cronologicamente, uma espécie de continuidade do ser em que a morte não é necessariamente o último capítulo, mas apenas um aspecto a mais de uma totalidade existencial; o Marcelo morto não impugna o vivo. Sentimos e experimentamos que somos eternos, como disse Baruch Spinoza, o filosofo favorito do ex-aluno de filosofia da USP Walter Hugo Khouri. O que talvez seja a mesma coisa que dizer que Carlos Gardel continua cantando – e cantando cada vez melhor.


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