As Feras (1995), por Eduardo Haak

Visto como trash bem filmado e bem fotografado, As feras, filme de Walter Hugo Khouri de 1995, pode ser bastante divertido. Paulo (Nuno Leal Maia) é um psicanalista (professor universitário, etc.) que está vendo sua linda e jovem mulher (Claudia Liz) lhe escapar por entre os dedos. A beldade inventou de querer ser atriz e está participando da montagem de uma peça, Lulu/Caixa de pandora, de Frank Wedekind (versão espúria em que Jack, o Estripador, mata a periguete Lulu no final). A diretora da peça (Branca de Camargo), lésbica agressiva, acolhe e lisonjeia Liz em suas aspirações de autonomia e realização pessoal. Aliás, o entourage de Branca é uma sapatice só – Branca namora Betty Prado (caras e bocas), tem um monte de assistentes, todas mais ou menos sáficas (até a deliciosa Vanusa Spindler é vista se agarrando com outra num canto discreto do teatro). O único homem do elenco (da peça) é Luís Maçãs, que interpreta o Jack. Tirando Maçãs, que faz um cafajeste transtornado interessante, Nuno, divertido em sua canastrice (não dá pra acreditar por um só instante que ele é um intelectual) e Liz (não se sai tão mal), o elenco é péssimo. Todas parecem ter feito às pressas um curso na escola de interpretação do Wolf Maia. Suas falas são um falatório interminável infestado de clichês sobre feminismo. 

A parte mais interessante da trama de As feras é a que mostra o paralelismo entre as vivências de Nuno Leal Maia e Luís Maçãs. Maçãs também viu, num passado recente, sua agora ex-mulher lhe escapar por entre os dedos, seduzida por outra. Ele vive agora num permanente exílio, absolutamente convencido do que Tirésias afirmava, que o prazer que as mulheres experimentam no sexo é imensamente superior ao que os homens experimentam, daí que é natural que elas acabem se dedicando umas às outras e excluam os rapazes de seus jogos. As falas de Maçãs – amargas, desesperadas, ressentidas – ativam certas memórias remotas de Nuno, que se lembra de quando foi apaixonado por uma prima (Lúcia Veríssimo) na adolescência. Lúcia, contudo, jogava no outro time, tendo uma ligação então escandalosa (idos tempos, etc.) com Monique Lafond, essa especialmente sádica no tratamento dispensado ao jovem. Depois de fazer vista grossa ao fato de que o rapaz andava espiando pelo buraco da fechadura as duas se pegarem, Lafond castiga-o dando bengaladas em suas partes pudendas. (Esse trecho do filme foi rodado em 1981, para o que seria um filme de episódios. Acabou sendo abandonado, quando Khouri e o produtor Aníbal Massaini Neto chegaram à conclusão de que a história era realmente boa e rendia um longa-metragem. Começaram então a rodar o que viria a ser Amor estranho amor.)

Dá o que pensar o fato de um diretor normalmente tão criterioso quanto Khouri ter feito um filme tão repleto de caricaturas. Mas o que é mais melancólico no filme é a debilidade intrínseca dos dois personagens masculinos (não vou mencionar o garoto parecido com o Noel Rosa que faz o Nuno adolescente), que desmoronam ao se verem abandonados por suas mulheres. Nuno (ele, o próprio, nosso inolvidável Homem de Itu) não dá para ser levado muito a sério, seja do modo que for (como psicanalista, como amante abandonado, etc.). Luís Maçãs, o caso de fato interessante, age como um perfeito bebê chorão – chora, xinga, arremessa objetos longe, fala das mulheres em linguagem chula e depreciativa. Sua intensidade, contudo, é apenas a intensidade do impotente irredimível. Outros personagens masculinos khourianos – basicamente os Marcelos todos – não teriam a menor dificuldade de colocar as coisas nos seus devidos lugares e de chamar as coisas por seus devidos nomes. A pilantrinha triunfante que faz o papel da ex de Maçãs, se colocada em Convite ao prazer, não passaria de uma prostituta a mais entre as incontáveis que Marcelo/Roberto Maya consumia diariamente em sua cobertura na Alameda Ministro Rocha Azevedo. Claudia Liz, com suas ambições artísticas e seus papos-cabeça, se colocada em Eros não teria um destino diferente do de Denise Dumont – ser trocada por alguma Christiane Torloni da vida, sem aviso prévio. Branca de Camargo, com seu lesbianismo/feminismo agressivo, lacrador avant la lettre, se colocada em As filhas do fogo viraria pó (melhor ainda: delicioso imaginá-la em O desejo, onde Lilian Lemmertz, sem dúvida alguma, a despedaçaria). 

Grandes peças ficcionais (filmes, livros, etc.) são aquelas que fazem grandes afirmações sobre grandes questões humanas. Essas duas coisas, contudo, são inconcebíveis no universo tosco e estreito de As feras. Tosco e estreito porque o material humano ali, a despeito das poses e dos jargões, é exatamente assim – tosco e estreito.


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