Marcelo (Fausto Carmona), um garoto de seus oito, nove anos, encontra-se em estado de depressão catatônica desde a morte da mãe, Ana (Maitê Proença). Não fala e não se move (é movido numa cadeira de rodas). Permanece longos períodos no jardim de casa, jardim que, se observarmos bem, parece uma versão miniaturizada (e, fatalmente, amesquinhada) do Pico das Prateleiras, Itatiaia. Muitos tratamentos foram tentados com o garoto, todos mal sucedidos. Uma nova cuidadora, também Ana (Mylla Christie), é contratada. Afetuosa, calorosa, vibrante, parece que vai conseguir trazer Marcelo de volta ao mundo, mas Marcelo pai (Antonio Fagundes) aparece, acha Ana gostosinha e a rouba do filho. Marcelinho afunda de novo na catatonia.
“Laio toma para si o que lhe é de direito, Édipo que arranje suas negas bem longe da tribo”, como se vê, trata-se de uma variação sobre o velho tema edipiano. O tema, de tão disseminado como fórmula fixa (Vladimir Nabokov disse uma vez achar patético que alguém pudesse acreditar que seus sofrimentos psíquicos pudessem ser aliviados com a aplicação de mitos gregos a suas partes íntimas), acabou envolvido por uma aura de irrealidade. Ninguém acredita (nem deve acreditar mesmo) que, quando era pequeno, se pudesse, teria matado o pai para fornicar com a própria mãe. O que não significa que não tenhamos uma ligação intensa com nossa genitora (sobretudo na infância) e que a perspectiva de seu desaparecimento não seja algo aterrorizante. Mas a perspectiva da perda do pai também é.
Admitamos, contudo, que Laio-Édipo-Jocasta seja uma boa história (e é) e que devemos nos entregar a ela com nossa incredulidade temporariamente suspensa (como deve ser, em se tratando de ficção). Existem notáveis narrativas ficcionais que têm por base o mito edipiano. Quando vemos La luna, Bernardo Bertolucci, 1979, somos fortemente tomados pela impressão de que, tal como o rapazote lá, seria impossível não nos apaixonarmos incestuosamente por uma mãe bela e sensual como a Jill Clayburgh. O mesmo podemos dizer de Paixão perdida, 1999, que veio a ser o último filme dirigido por Walter Hugo Khouri – como não se apaixonar por Maitê Proença, ainda que sendo filho dela, e como não afundar numa aparentemente cabal depressão catatônica com seu desaparecimento? Quando colocadas na clave correta, as coisas adquirem proporcionalidade e justeza. Uma verdade mito-poética não só não precisa ascender a outros níveis de credibilidade (retórica, dialética, analítica), como é justo que permaneça apenas como aquilo que é (mais Sófocles, menos Freud).
Marcelinho está lá, em sua cadeira de rodas, em sua catatonia, em seu quintal, contemplando a caricatura mesquinha do Pico das Prateleiras. Interessante observar o Marcelo pai, o infatigável Marcelo, interpretado por Antonio Fagundes no apogeu dos cinquenta anos, soberbo e majestoso como um rei de carta de baralho. Como a franga da Mylla Christie poderia resistir a tamanha força centrípeta? Sem qualquer chance. Ainda que pensemos, “pô, sacanagem ele impor mais um trauma ao já intensamente fragilizado Marcelinho”, Marcelo pai faz o que deve ser feito (ferra com tudo, escanteia a jovem e bela namorada, Paula Burlamaqui – muito bem no papel de barata tonta com esgares histéricos de mulher abandonada –, arrebata a Mylla). De certa perspectiva, Mylla Christie não teria mesmo como trazer o garoto de volta à realidade, porque a realidade não é uma conexão idílica e erotizada entre filho e mãe (ou figura materna), mas a resolução do Complexo de Édipo via identificação com o pai (“seja como eu, soberbo e majestoso como um rei de carta de baralho, que haverá muitas Myllas em sua vida”). A expressão do conflito de lealdades de Mylla é esplêndida (não me lembro dela num papel melhor); a insistência de Fagundes em não ser complacente com o que é fraco, doentio, mórbido (o estado em que o filho se encontra) é plenamente justificável; a tentação da inação do Marcelinho também tem imensa razão de ser (a consciência da inutilidade dos tumultos vitais humanos e seus consequentes tormentos e a aspiração a uma quietude nirvânica). Walter Hugo Khouri sairia de cena não muito tempo depois (morreu em 2003) e pode-se dizer que esse filme fecha muito bem sua filmografia. Eis o mundo e eis seu jogo de forças, pode-se dizer sobre Paixão perdida – jogo de forças fadado a permanecer nesse entroncamento confuso (e trágico, em última análise) que resolução de Complexo de Édipo nenhum pode deslindar.
Paixão Perdida (1999), por Eduardo Haak
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