WALTER HUGO KHOURI POR EDUARDO HAAK
Posfácio de Carlos Ormond e Andrea Ormond
Março de 2023
ÍNDICE
O amor verdadeiro que triunfa sobre formas espúrias de amor é o tema de Estranho encontro, filme que Walter Hugo Khouri dirigiu em 1958 – um Khouri que, aos vinte e nove anos e dirigindo seu segundo filme (o primeiro, O gigante de pedra, de 1953, não existe mais, exceto alguns fragmentos) mostrava ser um artista ainda inseguro, que deixou correr frouxo uma história repleta de clichês e inverossimilhanças. Pra piorar, os herois do filme (mocinho e mocinha) são interpretados por péssimos atores, Mário Sérgio e Andrea Bayard (o que, de alguma forma, é compensado pela dupla de vilões, Luigi Picchi e Lola Brah, atores notáveis).Um gigolô com um quê de bom moço (Mário Sérgio), gigolô circunstancial, encontra uma jovem e bela (Andrea Bayard) vagando à noite por uma estrada baldia. Coloca-a em seu carro e a leva para casa. Na verdade esconde-a lá, porque: o caseiro (Sérgio Hingst), que não gosta dele, não pode saber que ele levou uma mulher para casa; a casa não é exatamente dele, mas de uma prima (amásia, na verdade). A jovem, que cultiva um monte de cacoetes estilo Branca de Neve em fuga, demora um pouco até dizer coisa com coisa. Até que chega ao ponto em que consegue contar sua história: orfandade aos dezoito anos, pobreza, subempregos. Um dia, quando trabalhava numa loja de relógios, conheceu Hugo (Luigi Picchi). Por insistência dele logo estavam morando juntos. Na convivência domiciliar o homem gentil e atencioso dos primeiros encontros cedeu lugar a um tirano. Hugo gostava de lhe contar (e recontar, e recontar) como havia perdido uma das pernas, na guerra – a dor de ter trinta e dois estilhaços em brasa incrustados na carne, a gangrena, a amputação sem anestesia. Não havia intimidade física entre o casal, dada a vergonha que Hugo sentia de sua deficiência. A relação era constituída apenas de intimidações e expressões de caprichos dele. Durante um tenebroso passeio noturno em que Hugo insistia em correr imprudentemente com o carro, a bela escapou, ficou vagando pela estrada e, enfim, encontrou o gigolô circunstancial.
O gig e a bela pobretona fujona (das garras de Picchi, sensacional com um sobretudo preto de vinil, com uma baita cara de vampiro – uma mistura de Michel Temer e Carlos Zara –, arrastando-se de bengala pelas matas da São Bernardo do Campo de 1957) se apaixonam. Gig a acomoda num depósito na chácara. O caseiro, que: havia lido no jornal o anúncio da fuga da moça, com uma promessa de recompensa; estava desconfiado de alguma coisa; detestava mesmo o amante da patroa, não demora a descobrir o esconderijo e telefona para o Luigi Picchi, o Vampiro de São Bernardo. Nisso a patroa (Lola Brah) aparece e percebe que ali tem coisa – o jovem amante está distante, irritadiço, etc. Vai farejando chácara afora e chega ao esconderijo, onde o Vampirão está tentando convencer a Branca de Neve a voltar com ele; a bela foge para um bambuzal, o vampiro a encurrala; Lola Brah aparece e diz, chega, deixe a moça. Acolhe maternalmente a nova amada de seu, agora, ao que tudo indica, ex-amante; não só acolhe como ainda empresta o próprio carro para que o novo casal siga para a lua de mel que mais lhes aprouver; depois de tanta generosidade, faz, sozinha, uma cena de mulher abandonada, chorando numa escadaria.
Tento me colocar na pele de Khouri e imaginar as considerações que ele foi fazendo para avançar do mundinho melodramático e mocorongo de Estranho encontro para o mundo adulto de Noite vazia (incrível pensar que apenas seis anos separam esses dois filmes). Não é inverossímil que Khouri tenha chegado à conclusão de que, para um artista se firmar e amadurecer aqui, tem de jogar duro, ou seja, não ter a mínima complacência com o brasileiro médio, seu imaginário, suas expectativas, suas macumbas, seus carnavais, suas superstições. Ele, o artista ambicioso, não deve se afastar um milímetro da convicção de que o brasileiro é um tipo maroto que manipulará você para que você seja complacente com sua debilidade, sua inépcia, sua falta de atrativos. O brasileiro, portanto, mais do que merecer, precisa ser tratado na ponta do chicote.
Walter Hugo Khouri, conhecido por sua elegância no trato pessoal, galante com as atrizes que dirigia, empunhando um chicote? Não se deixem enganar pela aparente delicadeza de Khouri. Afinal, dirigir, em última análise, é manipular e mandar. É discriminar, dizer sim ou não. Dirigir, em suma, é a prevalência do indivíduo sobre a massa amorfa da coletividade. Só se faz isso – e se faz bem – com um chicote na mão (ainda que escondido) e com uma salutar dose de arrogância (ainda que ocultada sob uma camada superficial de gentileza). Claro que Khouri atraiu, com isso, a má vontade de seus pares e a acusação idiota, dentre outras, de que seus filmes eram pouco brasileiros (até Leon Cakoff, com uma nada salutar arrogância, tocou na questão na entrevista cedida por Khouri ao programa Vox populi, TV Cultura, 1982). Passadas essas discussões todas, temos hoje a obra de Walter Hugo Khouri. Quando vemos seus filmes, com as naturais oscilações de qualidade (alguns grandes, outros modestos), percebemos que estamos não diante de um punhado de coisas inconexas, mas de uma obra, com a coesão e a organicidade de uma obra. Sorte nossa de que Khouri tenha tido a vocação, o tônus e os meios para realizá-la.
Luigi Picchi, o primeiro ator propriamente khouriano, predador, masculinidade tóxica, italiano casca grossa demais para encarnar algum futuro Marcelo, comanda uma mina de diamantes no interior do Mato Grosso. Comanda como manda o figurino – semiescraviza os garimpeiros na base de dívidas contraídas com itens de primeira necessidade, que são vendidos monopolisticamente que ele. Essas dívidas, claro, nunca poderão ser pagas, porque Picchi compra os diamantes extraídos da mina a preço vil. Fugir não é uma opção para os garimpeiros – além do regime de terror imposto por Picchi (repressão, castigos corporais, execuções sumárias, etc.), quase todos são criminosos foragidos da justiça e o interior do Mato Grosso em 1959 oferece alguma possibilidade de eles permanecerem em lugar ignorado e não sabido.Um forasteiro, Paul (Hélio Souto), aparece no lugar num jipe, alegando estar procurando o caminho para a Bolívia. É abordado por um dos garimpeiros, que tem um plano de fuga para ele e a filha (e um diamante de alta quilatagem que ele encontrou e pretende desviar). Paul diz que topa ajudá-lo e pergunta onde pode encontrar gasolina. Para na vila e é interpelado por Picchi e seus capangas, que espancam o garimpeiro até a morte (desconfiam do diamante desviado) e tiram uma peça do motor do jipe, colocando Paul virtualmente na posição de refém. Eles querem saber o real propósito do forasteiro, algo que eles não vêm a saber. Na verdade Paul tem uma razão muito pessoal para ter ido àquele lugar, razão essa que é revelada no final do filme, momento em que os maus (Picchi, capangas, etc.) se entredevoram e destroem-se e os bons finalmente conseguem escapar do inferno.
Quem define assim aquele lugar – inferno – é a cafetina (Lola Brah) que tem sua casa de entretenimento ali no garimpo. Lola diz a Paul que já teve casas em locais melhores – Paris, etc. –, mas que as pessoas, onde quer que se esteja, são sempre as mesmas, igualmente ruins. O bordel tem os tipos pitorescos de sempre, com destaque para um padre que toca violão para entreter os frequentadores, geralmente com a Bíblia apoiada no instrumento, a qual lê enquanto toca. A filha do garimpeiro morto disse a Paul (com quem acaba se envolvendo romanticamente) que a única pessoa confiável naquela vila era a tal cafetina. Aliás, as mulheres se destacam no filme – por observarem e deduzirem melhor do que os homens (aqueles, pelo menos), quando o momento apropriado chega protagonizam os atos decisivos que acabam levando o garimpo ao colapso.
Walter Hugo Khouri se sai muito bem nesse que foi o terceiro filme dirigido por ele. Tirando alguns momentos em que pequenas inverossimilhanças ameaçam a credibilidade da narrativa (por exemplo, Picchi e os capangas não procuram direito o tal diamante desviado, o que seria relativamente fácil de fazer), a história é envolvente, dinâmica, coesa. O elenco, no geral, é bom. Fronteiras do inferno supera bastante o filme anterior de Khouri, Estranho encontro, e creio que se equivalha em termos de qualidade ao filme posterior, Na garganta do diabo, que conta a história de um grupo de desertores da Guerra do Paraguai que vivenciam as agruras da lei da selva, lato e strictu sensu. Aliás, a semelhança entre os dois filmes não se limita apenas à qualidade. Ambos mostram o mundo como um inferno do qual as chances de escapatória sempre são mínimas (a presença de diabo e inferno nos títulos não é casual). Ainda que não tenha aquele estilo que reconhecemos como estilo do Walter Hugo Khouri, Fronteiras do inferno é profundamente khouriano em seu tema, desdobramentos e conclusões.
A deserção em tempos de guerra é invariavelmente punida com a morte. No caso da Guerra do Paraguai os comandantes militares nem tinham de se dar ao trabalho de ir atrás dos desertores para lhes infligir a penalidade máxima – mais simples deixá-los vagar pelos charcos infectos da tríplice fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai), onde certamente morreriam de tifo, cólera ou malária. Enquanto a morte não chegasse, restava aos desertores saquear o que ainda fosse possível (uma vaca adoentada ali, um porco isolado acolá) ou tentar, por exemplo, algum acordo de sobrevivência com os índios locais. É isso que inicialmente um quarteto de desertores faz (dois brasileiros, um paraguaio e um nativo, pertencente sabe-se lá a qual lado beligerante) – chegam a uma tribo, oferecem armas ao cacique, etc. Tudo parece se encaminhar a uma acomodação razoavelmente amistosa, quando então o nativo (índio também) agregado ao tal quarteto mostra ser não um bom, mas um mau, um péssimo selvagem – mata uma menina da tribo para lhe roubar um colar. Luigi Picchi, que lidera o grupo, dá uns safanões no bugre latrocida (Picchi, além da pinta de vampiro, tem também algo do jeito arisco de ser do Moe, dos Três Patetas) e arranca o colar dele. Sabe que agora o grupo tem de sair dali o quanto antes, já que os índios da tribo virão atrás deles para se vingarem.Encontram uma fazenda habitada por um velho e alquebrado pai (Fernando Baleroni), duas belas filhas (Edla Van Steen e Odete Lara) e um empregado cego (Sérgio Hingst, usando uma peruca ridícula que o deixa com pinta de Corcunda de Notre Dame). Nada há a ser saqueado ali. Há um único porco, que Picchi ordena que seja abatido e preparado para a trupe. O grupo banqueteia-se e embebeda-se. O outro militar brasileiro desertor, alferes (André Dobroy), começa a manifestar sintomas do cólera. Picchi determina que ele agonize e morra longe da casa, e assim é feito – Edla e Hingst, aparentemente sem medo de se contaminarem, conduzem o semimoribundo para um descampado. É chegada a hora de dormir e Picchi diz que logo mais escolherá com qual das duas filhas beldades irá ficar (depois dos prazeres da mesa, os da cama, claro).
No meio da madrugada bate na porta de Odete. Ela abre a porta. Picchi diz que está com a mão machucada e que ela precisa fazer um curativo. Dessa proximidade física advém outra e a lebre é abatida (v. Carlos Eduardo da Corte Imperial), sem que haja propriamente resistência por parte da lebre. Não só não há resistência como Odete se apaixona pelo vampirão Picchi. Sugere fugir com eles, os desertores, em posse de certa quantidade de ouro que o pai ainda tem (que coisa feia, hem?, dona Odete, roubar o pai e ainda virar mulher de um bandoleiro). Paralelamente a isso, a outra irmã, Edla Van Steen, está tentando salvar o alferes, à base de hidratação, etc. O que parece improvável acontece e o alferes começa a se recuperar.
O barulho da artilharia paraguaia começa a se fazer presente, o que atemoriza a todos e leva o desertor das fileiras do Solano López a uma crise histérica – embebedado, sobe numa mesa e chuta tudo enquanto canta repetidamente o trecho de uma guarânia. (A atuação de José Mauro de Vasconcelos é impressionante, nessa e em outras cenas. É curioso que esse filme abrigue dois atores que vieram a ser de fato conhecidos como escritores, ele e Edla Van Steen. José Mauro foi ator constante nos primeiros filmes de Walter Hugo Khouri, estando presente em Fronteiras do inferno, 1959, Na garganta do diabo, 1960 – o filme aqui analisado – e A ilha, de 1963.) O grupo discute se é menos arriscado permanecer na fazenda ou procurar outro lugar, dada a proximidade do exército inimigo. O impasse não se resolve. Os índios (da tribo V for Vendetta) finalmente encontram os desertores. Picchi arrasta o mau selvagem para fora de casa e o entrega ao vingadores. Contudo, o colar que foi roubado da indiazinha morta está no bolso de Picchi e o mau selvagem malandramente o puxa para fora. Picchi ainda protesta, “não fui eu!, não fui eu!”, mas é cercado e levado pela indiada, que o pune cobrindo sua cabeça com a roupa ensanguentada da indiazinha e o largando à beira das Cataratas do Iguaçu, de onde fatalmente ele despenca. Cosa Nostra, Estado Islâmico e Vincent Price em Dr. Phibes aplaudiriam e pediriam bis, como na ópera.
Descontadas as fragilidades patentes de A ilha, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1963 – uma história meio mal-ajambrada de um grupo de sibaritas que se mete a ir atrás de supostos tesouros perdidos em Ilhabela –, temos ali a grande presença de Luigi Picchi, o primeiro ator propriamente khouriano (trabalhou em Estranho encontro, 1958, Fronteiras do inferno, 1959, Na garganta do diabo, 1960, A ilha, 1963, O último êxtase, 1973). Luigi Picchi, aliás, poderia ter protagonizado um notável filme de vampiro, algo que o cinema brasileiro, infelizmente, não chegou a fazer – physique du rôle para isso ele tinha de sobra (fisicamente ele era uma mistura de Carlos Zara, Doca Street e do ex-presidente Michel Temer).Picchi, suas obsessões, sua ganância, sua vilania assumida, é um daqueles tipos humanos dotados de tamanha força centrípeta que não tem como não fazer o mundo orbitar em torno de si. Todos seus atos são uma demonstração de máximas como o homem é o lobo do homem – ele faz, por exemplo, uns meninos que o ajudaram a transportar coisas para o barco (que vai ser usado na busca pelo tal tesouro) disputarem a tapas o dinheiro dado de caixinha, obrigado, arremessando a nota ao mar, “a competição é sempre benéfica”, diz ele. Trata os empregados na base de insultos e bofetões. Não hesita em descarregar seu revólver contra um gato que se aproxima do aquário onde estão seus peixes betta splendens (raça conhecida, aliás, por sua agressividade). Como está chegando o momento de os peixes acasalarem e ele espera conseguir uma coloração inédita na cria, Picchi leva o aquário-trambolho consigo, no barco.
O grupo de sibaritas chega à ilha onde supostamente há o tesouro escondido. Arma ali suas barracas e se entrega à esbórnia (bebedeiras, etc.). Picchi, contudo, mantém-se aprumado, estudando mapas e planejando incursões pela ilha. A caça ao tesouro, contudo, quando posta em prática, vai parecendo cada vez mais uma empreitada fantasiosa. Conflitos emergem. Um dos sibaritas, Mario Benvenutti, morre afogado ao buscar o tesouro por conta própria. O barco desaparece, com todos suprimentos e água potável de que o grupo dispunha. Uma das convivas adoece ao ingerir a água salobra disponível na ilha. Alguém sugere que bebam a água do aquário. Picchi cede meio copo à moça que adoeceu, e só. Se for pra alguém morrer, que morram as pessoas e vivam seus peixes.
A imagem de um aquário plantado no meio de uma praia está entre as mais inspiradas já concebidas por Walter Hugo Khouri. Tem algo das desconcertantes concepções visuais de René Magritte, além de uma grande força simbólica – o mar interminável contrastando com o espaço exíguo onde dois peixes betta buscam-se, cada qual aprisionado em seu compartimento. Metáfora da condição humana? Não é difícil se chegar a uma conclusão como essa. Khouri frequentemente usou em seus filmes símbolos que apontam para esse significado – o urso enjaulado em Eros, o deus do amor, o cavalo abatido a tiros em O corpo ardente, a tela Os amantes, de Magritte, na abertura de Convite ao prazer.
A aventura se encerra quando um barco de pescadores avista o grupo e o resgata. No meio da travessia Picchi percebe que se esqueceu do aquário, tenta fazer os donos do barco voltarem, mas eles dizem não. Na praia, o gato que habita a ilha (e que sobreviveu à má pontaria de Picchi) derruba o aquário, devora os bettas e decide ir descansar em seu cafofo, uma caverna com as coisas todas que as cavernas costumam ter, acrescidas do tal tesouro que Picchi e os agregados não conseguiram achar. Uma canção de ninar, executada num primitivo sintetizador, é tocada enquanto o felino se acomoda entre peças de ouro e pedras preciosas. Bisonho, porém simpático.
Desconhecidos íntimos são aqueles desconhecidos com quem eventualmente estabelecemos algum tipo de contato e para quem podemos chegar a dizer (e de quem podemos ouvir) coisas surpreendentemente íntimas. Foi Nelson Rodrigues quem criou a expressão. Aliás, certas intimidades (e certas sinceridades) parece que só são possíveis entre desconhecidos – se você não vai ver mais aquela pessoa, pode confessar sem atenuações a antipatia que sente por ela, por exemplo. É um tipo interessante do ponto de vista dramatúrgico. Na verdade o tipo é bem mais do que interessante, sendo o agente dramático próprio (talvez o único possível) das situações fugazes de que nossas vidas também são feitas. Em Noite vazia, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1964, o desconhecido íntimo tem um papel fundamental.Numa noite como qualquer outra, dois amigos, Gabriele Tinti (Nelson) e Mario Benvenutti (Luís), saem de carro por aí com o objetivo de pegar mulher. O de Benvenutti, notadamente, é esse. Tinti mostra-se hesitante, entediado que está com a rotina de farras dos dois. Confessa que, naquela noite, preferia ir a uma festa de aniversário, “daquelas bem caipiras, com parabéns a você e tudo”. Na falta de uma festa de aniversário à mão, os dois dão uma parada num bar onde são abordados por uma jovem alcoolizada (a bela Marisa Woodward). Dispensam-na (“você é muito normal”, “hoje não estou bom para consolar ninguém, preciso que alguém me console”) e vão para outro lugar, onde logo percebem que estão sobrando (pessoas bem mais jovens do que eles, rock, etc.). Acabam indo a um restaurante japonês, onde casualmente encontram um amigo de Benvenutti acompanhado de duas prostitutas, Norma Bengell (Mara) e Odete Lara (Cristina). O sujeito, que se chama Lico, está pra lá de Nagasaki (bebeu muito saquê) e acaba apagando ali mesmo. Benvenutti e Tinti arrebatam as moças e as levam para a garçonnière deles.
No período de algumas horas (até o amanhecer) que eles permanecem juntos nada de extraordinário acontece. Mario Benvenutti e Odette Lara parecem experimentar algum prazer em se provocarem e se agredirem verbalmente, autorizados a isso que estão pela condição de desconhecidos íntimos um do outro. Gabriele Tinti conserva-se deprimido e introspectivo. Norma Bengell aparenta estar feliz, de alguma forma, e sem nenhum motivo em particular para estar (em algum momento ela confessará a Tinti que para ela tudo sempre está bom e que ela gosta de ser exatamente do jeito que é). Cada um deles lida com a situação de radical intranscendência daquela noite como pode, seja cochilando, tomando chuva (no terraço do apartamento), vendo filme pornô (O presente do Papai Noel), folheando revistas, etc. Contudo, se observarmos bem, a personagem de Norma Bengell se sai consideravelmente melhor do que os outros nesse embate com a vacuidade. A razão disso reside no fato de sua interioridade ser mais coesa do que a dos outros três. O barulho da chuva lhe traz a terna lembrança de um momento quando era menina e observava a mãe preparando alguma coisa num fogão a lenha (o ruído da chuva e o ruído de alguma coisa sendo frita são de fato semelhantes). Está implícita nessa conexão que lhe ocorre a continuidade essencial entre menina do passado remoto e a mulher de hoje. Quem tem a si mesmo se basta, talvez possamos dizer isso a respeito da personagem de Norma.
À sua maneira o rude e enfastiado Mario Benvenutti percebe essa distinção, esse caráter íntegro e benévolo da personagem de Bengell. Ao pagar Odete Lara pela manhã, ele diz, “isso é para o seu fundo de velhice, que logo você vai estar precisando”. Para Norma Bengell ele diz, quase gentil, “isso é por seu espírito de colaboração”. Apesar de seu ajustado senso de proporções, Benvenutti sabe que a felicidade é uma vocação pessoal e intransferível, sorte de quem tem, azar de quem não tem, Bengell nada pode ensinar a quem quer que seja, ela que seja feliz com a felicidade dela.
Depois de deixá-las numa Praça Roosevelt que ainda era um amplo descampado (sua forma atual data de 1970), Benvenutti e Tinti seguem pela Avenida Nove de Julho (vê-se o MASP em construção quando eles se aproximam do túnel). Benvenutti fala sobre uma festa que ocorrerá no dia seguinte, que uma tal de Renata vai estar lá, o que desperta algum interesse em Tinti. Benvenutti pergunta se é para deixá-lo em casa, Tinti diz que prefere ficar naquela pracinha, que vai caminhar um pouco, que não adianta ir dormir agora, que dali a três horas ele vai ter de estar no trabalho. Benvenutti deixa o amigo na Avenida Brasil (com as mesmas casas de hoje, mas ainda residenciais). Tinti observa uma árvore, se próxima dela. A câmera enquadra a árvore inteira, esse símbolo axial (eixo do mundo), vertical, ascensional. Embora um símbolo não signifique exatamente isso ou aquilo, sendo antes uma matriz de intelecções (Susanne K. Langer), o sentido do símbolo árvore ali é amplamente eloquente – talvez não haja saída para nossas angústias no plano da pura horizontalidade. Mas talvez haja se olharmos para o alto. Talvez.
O corpo ardente, de 1966, foi o filme dirigido por Walter Hugo Khouri que mais o satisfez. Sua personagem principal, interpretada por Barbara Laage, poderia ser chamada de Marcelo de saia. Embora não seja predadora como os Marcelos (sobretudo os de Roberto Maya) e tenha uma feição introspectiva, Laage tem o mesmo ardor, o mesmo desalento, a mesma ânsia pelos absolutos. Em nenhum outro filme de Khouri uma personagem feminina tem tamanha amplitude e centralidade. Selma Egrei é a atriz principal de O anjo da noite, de 1974, mas divide bastante o protagonismo com Eliezer Gomes, com as crianças endiabradas à la The turn of the screw, com os animismos todos presentes na casa onde vai trabalhar. As filhas do fogo, de 1978, é protagonizado por uma penca de mulheres, algumas das quais em versão desencarnada. Geneviève Grad protagoniza O palácio dos anjos, de 1970, mas o escopo de sua personagem (a mulher bonita que sai de uma situação de submissão, secretária eficientíssima, e conquista a alforria se prostituindo) é bem mais modesto que o de Barbara Laage em O corpo ardente.Laage, uma mulher atraente passada dos quarenta e cinco, percebe-descobre que o amante, Mario Benvenutti, se desinteressou dela. O marido de Laage, interpretado pelo Pedro Paulo Hatheyer, também está afundado em pasmaceira com a amante, interpretada por Lilian Lemmertz. Lemmertz se tornou amarga e reclamona. Os dois passam longos períodos na sala do apartamento dela, olhando a TV, como qualquer casal casado corroído pelo tédio. No silêncio birrento de Lemmertz ecoa sua queixa fundamental – ela quer que Pedro Paulo se separe da mulher para ficar com ela, aquela história banal de sempre, o apego à crendice de que o casamento vai extinguir o vazio que as pessoas sentem no peito, etc. O filme poderia dar um encalhada aí, se Khouri desse mais atenção a esse draminha de ser a outra, mais do que o tema merece. Khouri, no entanto, tinha expertise em matéria de upper class. Drama de corno, sofrência, é, sem dúvida, ideologia de classe média, ideologia no sentido de falsa consciência, como dizia a besta do Carlos Marx (v. Nelson Rodrigues). (Citando outro filme de Khouri, a agressiva possessividade de Helena Ramos em relação ao marido, Serafim Gonzalez, em Convite ao prazer, de 1980, contrasta com o laissez faire afetivo de Sandra Brea em relação a Roberto Maya, estes dois formando o casal upper do filme, aqueles, o de classe média que tem discussões prosaicas durante o jantar, discussões sobre, por exemplo, a troca de cortinas de casa, “ficaram um pouco caras, mas vão durar bastante”, etc. Helena Ramos, por trás de sua discurseira moralista contra a infidelidade, “rico não tem vergonha na cara”, etc., está apenas cuidando do que é dela, sendo seu status de mulher casada seu único capital. Brea, rica de nascença, não precisa ser ciosa nesse sentido.) A upper class tende a ter, em relação a assuntos sexuais, uma atitude mais para a máxima de Terêncio, “nada do que é humano me é estranho”. Pedro Paulo Hatheyer sabe que pode rifar a mulher porque amante é uma substância perecível como qualquer outra que existe sobre a Terra. Estamos todos, homens e mulheres, no mesmo barco, na mesma ratoeira, qualquer metáfora do tipo (“não há saída”) serve. Lilian Lemmertz e suas reclamações de mulherzinha fulguram por um breve instante na tela e desaparecem (“sorry, periferia”, como dizia o Ibrahim Sued), e Khouri aponta sua câmera para o que/quem de fato importa.
Passado o choque de perceber-descobrir que o amante havia se desinteressado dela, Barbara Laage decide viajar com o filho. Seu destino é Itatiaia, região montanhosa na tríplice fronteira entre os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Fazia anos que ela não ia à casa, que pertence à sua família desde que ela era criança. “Está quase tudo como antes, só os móveis mudaram um pouco”, ela diz à criada. Sempre há nesses reencontros com o passado um anseio restaurador pelo eterno, definido por Boécio como posse plena e simultânea de todos os momentos. Talvez cheguemos a intuir que para além do tempo está a eternidade que o abrange. Por outro lado, o que de fato vemos à nossa frente são os vazios e as ausências que parecem aumentar à medida que o tempo passa. Não temos garantia de que somos algo além de um rudimentar conjunto reflexos condicionados, uma fantasmagoria momentânea. Se quisermos arriscar ir além, teremos de nos contentar com o universo simbólico, com um símbolo ou outro, necessariamente insatisfatório e conflitivo, alusivo a nosso possível devir.
Laage sobe com o filho, Wilfred Khouri, um garoto de seus oito, nove anos, pela trilha que vai até o Pico das Prateleiras. Encena, ludicamente, sua coroação como rei, sentando-o no trono de pedra (uma formação rochosa de fato parecida com um trono). A ludicidade da coisa não exclui o óbvio investimento libidinal que ocorre ali, Jocasta entronando Édipo, etc. Na volta, os dois avistam o cavalo preto que fugiu de uma fazenda próxima, que está sendo procurado pelo fazendeiro, Sérgio Hingst, e seu capataz, David Cardoso. Hingst, algumas cenas antes, passou pela casa de Laage e perguntou aos criados se eles tinham visto o cavalo. Ele disse que antes o animal comia em sua mão e que, de um dia para o outro, parece ter enlouquecido. Há uma troca de olhares entre Hingst e Laage, hostil de parte a parte. Hingst parece dizer, “é sua presença nefasta aqui, bruxa, que enlouqueceu o bicho”. Não se trata de uma simples superstição de roceiro, como a história acabará por demonstrar. Laage parece mesmo exercer influência sobre os cavalos, que ficam desassossegados na sua presença (“a mulher é a senha do motim”, como disse Walter Franco).
O cavalo preto correndo livre pela paisagem rochosa de Itatiaia se torna o totem de Laage. Ela tenta protegê-lo da dupla que está em seu encalço. Torce por sua fuga. Contempla-o como algo que ao mesmo tempo está perfeitamente instalado no mundo natural (como nunca o ser humano consegue estar) e como um símbolo alusivo ao mundo dos deuses (um mundo também inacessível a nós). Seu marido, Hatheyer, vem visitá-los e traz uma filmadora de presente para o filho, Wilfred Khouri, que, fisicamente muito parecido com o pai (Walter Hugo), se torna uma espécie de O pequeno cineasta. A filmadora super-oito leva Laage e Hatheyer a um mundo lúdico que parece de alguma forma restaurá-los, devolvê-los a uma espécie de plenitude infantil, no melhor sentido que a palavra infantil pode ter (“se não fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus”, v. Jesus Cristo). Um filma o outro fazendo caretas engraçadas, usando óculos ridículos, encenando suicídios e homicídios de maneira cômica. Apesar de todos pesares, amantes, etc., vemos que há muita ternura e afeição entre os dois. A presença da câmera também introduz em O corpo ardente a tal da metalinguagem, o cinema que discorre sobre o cinema. O desfecho do filme, aliás, irá por aí, falarei disso um pouco adiante.
A dupla fazendeiro-capataz apela a uma égua no cio para atrair e laçar o cavalo fujão. É inevitável pensar em nossos próprios aprisionamentos decorrentes de nossos impulsos sexuais (o filme de Walter Hugo Khouri de 1979 se chama O prisioneiro do sexo). O cavalo se aproxima da égua, a cobre e escapa mais uma vez. Hingst, por fim, vence o animal, abatendo-o a tiros, depois de ter sido arrastado por ele após laçá-lo. (O mundo da cultura vence o mundo da natureza, etc.) Laage segue o rastro de sangue e honra a memória de seu profanado totem depositando flores sobre uma pedra. O oráculo pronunciou sua sentença, Laage sabe que nada mais lhe será dito, é hora de voltar para São Paulo (Laage ainda vê uma imagem síntese enquanto abastece o carro para pegar a estrada, um cavalo atado a uma carroça – estático, prosaico, servil).
As artes narrativas, cinema, livros, etc., servem para restaurar uma relativa plenitude do real que não teria como ser restaurada de outra forma (alguns sonhos exercem também essa função). Laage está de volta a seu mundo comum (contraposto ao mundo especial da aventura, como definiu Joseph Campbell em O herói de mil faces), suas festas burguesas com suas discussões pedantes sobre pintura, os acenos de possíveis novos amantes, etc. O filho brinca numa das salas da casa com um projetor, que exibe na tela o filme rodado em Itatiaia – as brincadeiras dela e do marido, o cavalo preto correndo pela estrada, etc. Apesar de se tratar de eventos de um passado então bem próximo, eles são isso, passado, portanto irrecuperáveis e inacessíveis. Sim, talvez o que não esteja mais presente no tempo, aqui e agora, continue a existir numa espacialidade ainda inacessível a nós, mas não temos como ter garantias ou certezas a esse respeito. Laage observa o filme de maneira quase furtiva. As cenas a divertem e enternecem. Vemos o filme de Laage vendo o filme e nos enternecemos com seu enternecimento. Estamos todos no mesmo barco, na mesma ratoeira, etc. Shakespeare dizia que somos feitos da mesma matéria que os sonhos. Walter Hugo Khouri parece dizer que, de alguma forma, somos feitos da mesma matéria que os filmes – substância fotossensível fixada em celulose.
A cena é comum. Um jovem (Paulo José, Marcelo, eu, você, todos nós), mas já não tão jovem que possa apelar a alguma complacência do tipo, o.k., erros típicos da juventude, da imaturidade, ou seja, um cara que já passou dos vinte e cinco e continua estudando, prestes a jubilar, sem qualquer perspectiva profissional ou existencial factível, caminha a esmo por São Paulo, que em 1968 já era a mesma matriz de impossibilidades infinitas que é hoje. Marcelo (eu, você) olha umas vitrines na Avenida São Luiz com aquele olhar de quem sabe que não vai encontrar o que está procurando (provavelmente nunca, em nenhum lugar). Cogita pegar um ônibus, conta o dinheiro e vê que dá para um táxi. (Enquanto a grana dá para um táxi, talvez dê pra ir levando.) Vai ao prédio onde a irmã (Lilian Lemmertz, linda e inexpugnável como sempre) mora, na esquina das ruas Oscar Freire e Ministro Rocha Azevedo. É recebido carinhosamente por ela, fala sobre a vida, recebe uns conselhos, toma umas leves reprimendas, flerta com a amiga que mora com a irmã (Jacqueline Myrna), senta-se com ela na parte externa da cobertura e ouve o que ela tem a dizer, toda animada – que sua carreira de atriz finalmente está deslanchando, etc. Marcelo parece razoavelmente bem instalado ali, naquele aspecto momentâneo da realidade, sentado na parte externa de uma cobertura nos Jardins, tomando café, ouvindo o falatório narcisista da pseudoatriz, meio que se deixando levar pela relativa atração que sente por ela, uma fulana que obviamente pertence à segunda divisão, em todos os sentidos, mas que de repente até que rende uma boa trepada (a vitalidade dos vinte e cinco anos nos impõe raciocínios e decisões do tipo). A aspirante a atriz em nada difere das arrivistas atuais. Hoje, em vez de extra da TV Tupi, figurante do Zé do Caixão, seria influenciadora digital, participante de reality show, faria harmonização facial e, last but not least, diria já ter sido abusada sexualmente (pauta boa para cavar entrevista). Marcelo, por fim, morde uma grana da irmã (ambos lidam com a situação com considerável compostura) e volta para seu cantinho no mundo, um quarto nos fundos da casa bacana de um amigo rico, cedido por este sabe-se lá até quando, com combustível (grana) para mais alguns dias. Ali estão os discos de Marcelo (Mozart, A Love Supreme, do John Coltrane, Musikantiga), os livros (Heidegger, Spinoza, D. H. Lawrence, Céline, revista Mad), os lençóis amarrotados, as cogitações (algumas rabiscadas na parede, à semelhança dos presídios). Clarice Lispector dizia que ela era uma pergunta. Marcelo talvez seja um dasein heideggeriano, que simplesmente está-aí (e que não está-nem-aí, no mais das vezes). O ser e o tempo permanece em sua pilha, mas, milênios antes de Herbert Vianna, ele já sabia que os livros na estante já não têm tanta importância assim.O negócio é diversificar os investimentos, inclusive (ou sobretudo) os libidinais. Isso soa mais Palhares (o canalha rodriguiano que não respeita nem as cunhadas) do que D. H. Lawrence, de quem Marcelo sem dúvida está mais próximo. De qualquer forma, ali está a Aneci Rocha, aluna de um curso qualquer de comunista (sociologia, geografia, pedagogia, etc.) na USP, cercada de amigos com aquelas caras de maus-bofes que o Lula costumava exibir em 1983, roisfejão do trabaiadô. A moça é até que legal, tem sensibilidade e inteligência para perceber Marcelo em sua totalidade, suas contradições, polarizações, etc., além de obviamente não levar tão a sério seus colegas uspianos e seus maus-bofes (em questão de um ou dois anos a maioria estará com a cara estampada em cartazes de Terroristas procurados; espero que Aneci tenha sido poupada dessa tragédia inútil).
A diferença entre Aneci e Jacqueline Myrna é que a segunda é tosca, primária, raiz, e talvez por isso mesmo tenha uma conexão maior com as coisas que de fato são reais. Provavelmente, por ser uma criatura primitiva, é uma amante mais crepitante do que a Aneci e suas abstrações uspianas. Não que isso proporcione alguma satisfação duradoura – não proporciona. Marcelo, após ver o vergonhoso desempenho de Myrna num programa de TV, tenta chamá-la à realidade, “estava horrível, isso não vai te levar a nada”, etc. Ela se defende, o que significa defender vigorosamente as ilusões que nutre a seu próprio respeito. (Apenas essas ilusões a separam de uma realidade à qual ela não quer ser chamada de volta, já que a realidade que lhe cabe provavelmente é a de uma vidinha sórdida em algum bairro periférico e lamacento, emprego ruim, etc.) Para mostrar que está por dentro, que não é mais uma criatura jogada fora, aceita entrar na perua Veraneio de uma turma pra lá de duvidosa, que fazia sabe-se lá o que ali nos estúdios da Rede Bandeirantes (atual Band), turma essa capitaneada por um Stênio Garcia cheio daquela vitalidade de búfalo da ilha de Marajó de que falava Nelson Rodrigues. Marcelo, que acha que não tem muito a perder, resolve ir junto. Os dois são levados a um bosque, onde são ampla e festivamente esculachados por Stênio e sua turma. Jaqueline é estuprada, Marcelo apanha até não poder mais.
O que são exatamente Stênio e sua turma só pode ser conjecturado. Talvez formassem um grupo de quebra-galhos, nebulosa e parcialmente agregado ao canal de TV. Não é impossível imaginar alguns deles como informantes do DOPS, banda podre da polícia civil, esquadrão da morte, CCC, etc. Independentemente de sua natureza nebulosa, o grupo é uma alegoria de que o poder bruto (ou seja, violência bruta) no fundo determina o que vai e o que não vai ser, o que pode e o que não pode, indiferente aos possíveis protestos de Marcelo, Jacqueline ou Aneci (ou meus ou seus).
Marcelo sobrava na realidade 1968 como sobraria hoje. Mas o senso de desimportância que fatalmente vem a acometer os Marcelos talvez seja mais atroz atualmente. Em 1968 parece que o mundo não estava tão saturado, com os canais tão obstruídos – o mundo não era feito à imagem e semelhança das multidões de mocorongos, toscos e ignorantes que hoje entopem tudo, em todos os lugares. Os ajustados tinham algum interesse em emitir opiniões, ainda que críticas, sobre os desajustados. Viam Marcelo com alguma empatia, acenavam com as possibilidades de realização oferecidas pelo mundo do trabalho, do esforço dirigido, etc. Mas esse diálogo se esgotou há muito tempo, com cada lado se assumindo como indigno à sua maneira. Trabalhar, afinal de contas, é aderir a um padrão de consumo que, em algum momento (desemprego, etc.), vai arrastar você a um mundo de dívidas e inadimplências. Isso sem falar na filha da putagem reinante no mundo corporativo, etc. Você está certo, Marcelo, melhor mesmo não sair do seu quartinho, ainda que isso implique em ser pela vida toda um vadio sustentado pela irmã. Na pior das hipóteses sempre podemos abraçar a mendicância, não é mesmo? Diógenes vivia num barril, Diógenes era um homem, logo todo homem pode perfeitamente viver num barril, premissa maior, premissa menor, conclusão.
A prostituta é uma das personagens dramáticas fundamentais porque expressa a implacabilidade de uma lei – a lei que define o dinheiro como o grande mediador das relações entre homens e mulheres. (Talvez a coisa vá além disso e a prostituta seja a grande metáfora do mundo, do peso maciço das necessidades naturais – sobrevivência, reprodução, etc. –, mas também de suas exorbitâncias, luxurias, etc.) É uma personagem incômoda porque não deixa ninguém esquecer que mesmo as mulheres honestas (casadas, etc.) têm mais semelhanças do que diferenças com as vadias (nenhuma mulher honesta pode realmente afirmar que nunca foi para a cama por dinheiro – e nenhum homem pode afirmar que nunca pagou por uma mulher). Sendo uma personagem altamente conflitiva, que habita a fronteira nebulosa entre dois mundos (mundos que se pretendem opostos, mas que, afinal, não são tão opostos assim) – ou seja, sendo uma personagem que exige uma calibragem bastante precisa, difícil de se obter, a prostituta pode facilmente ser sentimentalizada, cair no kitsch (Fellini incorre exatamente nesse erro em Noites de Cabíria). Aliás, o kitsch impera em se tratando do assunto. Relatos pitorescos sobre prostituição são kitsch puro – condutas supostamente transgressoras (que não transgridem coisa alguma), suposta expertise em sem vergonhices que depois serão vendidas para donas de casa apimentarem seus casamentos, supostas revelações de segredos (que nada têm de secretos), suposta moral da história “fui fundo na degradação, mas superei isso tudo” (nada mais cansativo – e kitsch – do que relatos rehab estilo Walter Casagrande Jr.), etc. As prostitutas, tão semelhantes às mulheres normais, também costumam se assemelhar às normais no quesito banalidade.A personagem de Geneviève Grad em O palácio dos anjos, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1970, pouco tem a ver com o percurso dramático que comumente se verifica entre as prostitutas. A prostituição, no caso dela, foi uma mera circunstância, rito de iniciação, espécie de triagem que separa aqueles que suportam ver as coisas tais como elas são (talvez nada desnude mais o ser humano do que o sexo) dos que não conseguem. E que separa, ainda, os que meramente suportam ver a deslumbrantemente monstruosa espécie humana enfim desmascarada dos que observam a coisa com real interesse e fascínio, e que fazem questão de persistir nessa trajetória não por outro motivo senão o de se saberem firmemente instalados na realidade, e cada vez mais. Geneviève pertence a esse segundo grupo. É uma criatura incomum, invulgar. É natural, portanto, que tire algum proveito disso.
Na abertura do filme são mostrados vários quadros da pintora búlgara-brasileira Sonya Grassmann. Os quadros mostram apenas mulheres, todas retratadas como belos e lascivos animais, ninfas com olhos gigantes, cariciosas entre si. A música, para guitarra (uma guitarra meio Robby Kriegger, The Doors, em The end) e flauta (os fraseados aludem a Syrinx, de Claude Debussy), parece ter o propósito de nos hipnotizar para que entremos naquela (al)cova das leoas. Que a princípio não passa de um inocente pool de secretárias num ambiente corporativo. A trama começa a se delinear quando Geneviève e duas colegas, Adriana Prieto e Rossana Ghessa, cansam-se da vidinha de salários modestos, apartamentos divididos, humilhações, etc. Pra que essas privações todas se podem faturar alto explorando coroas endinheirados? Até aí, é o comum nesse tipo de história. Mas Geneviève logo se distingue das duas colegas. Enquanto uma vomita depois de se deitar com um cliente (e decide voltar, surtada, para o subúrbio de onde veio, onde é calorosamente acolhida por seu velho cão vira lata), Geneviève vai dobrando as apostas. O ex-chefe, Luc Merenda, enfim a vê como uma criatura da mesma espécie que ele (ambiciosa e inescrupulosa), cogitando-a como possível parceira de futuras trapaças. Geneviève não recua. Por que recuaria? O mundo, afinal de contas, tem algum limite? (Geneviève acaba encontrando um possível limite em seu encontro com Norma Bengell, mas o contorna.)
É fascinante testemunhar como as pessoas reluzem quando lhes é dada oportunidade de serem exatamente aquilo que são (nada mais reluzente do que um canalha realizado em sua canalhice, ou um santo realizado em sua santidade, ou um idiota realizado em sua idiotia, etc.). A grande ficção não é feita de poses, clichês, atenuações, fazeções de média com o que supostamente é mais conveniente. Para além da aprovação ou desaprovação de condutas específicas (nemesis fatalmente punirá hybris, podemos ficar sossegados quanto a isso), a ficção presta reverência àquilo que é real. Geneviève, ao fim e ao cabo, revela-se uma cafetina das mais reluzentes e toda sua graça reside nisso (assim como a graça do Mano Brown reside em ele ser um indiscutível e reluzente maloqueiro, por exemplo). Tido como um filme menor de Walter Hugo Khouri, O palácio dos anjos na verdade é insuspeitadamente imenso.
Quis o destino que boa parte dos viventes do século XX fossem acolhidos em seus desamparos fundamentais por um ramo então experimental da medicina: a psiquiatria/psicologia. Acolhidos, sim, porque a cultura psi se expandiu para muito além de uma metodologia clínica voltada à tentativa (invariavelmente fracassada) de curar transtornos mentais, tornando-se chave explicativa para tudo – fulano tem um tique nervoso porque a garota mais bonita da escola esnobou-o quando ele tinha doze anos, sicrano não consegue progredir na vida porque inconscientemente continua subjugado por um pai tirano, beltrano escolheu a profissão de diretor de cinema porque pôde exercer através dela, de modo sublimado, suas pulsões sádicas e masoquistas, etc. A coisa foi muito além do nível individual – regimes políticos autoritários têm em sua base multidões incapacitadas para o gozo sexual, segundo Wilhelm Reich (Reich, de acordo com o Analista de Bagé, se abanque no más, tchê, é onomatopéia de cuspe). O nazismo, segundo C. G. Jung, em parte pode ser explicado por uma figura mítica – Wotan – que habita o inconsciente coletivo da Alemanha. Sigmund Freud via a interdição do incesto na raiz de nossas manifestações culturais todas. E por aí vai. Foi fatal que os conflitos humanos ficcionalmente elaborados não escapassem dessa influência: por trás de todo Hamlet, Otelo ou Rei Lear há uma psicopatologia que, se deslindada, resolverá toda problemática a respeito deles.Malucos sempre foram alvo de interesse e curiosidade. Manicômios eram lugares de visitação pública onde os doentes exibiam seu freak show, entre o cômico e o grotesco (v. Atrocity exhibition, Joy Division). Toda cidadezinha do interior tinha seu louco de estimação. Nenhum mistério nesse interesse todo. Os portadores de distúrbios mentais normalmente são muito expressivos (expressividade fugaz, claro; nada mais monótono do que alguém em permanente desconexão com a realidade). Indo para um grau mais brando de psicopatologia, os neuróticos também podem ser interessantes. Ou no mínimo ter uma presença impactante. Penso agora no Dennis Hopper em Blue velvet. Ou na famosa entrevista que Clarice Lispector deu para a TV, meses antes de morrer. Ou no Seymour Glass e seu diálogo deliciosamente alucinado com a garotinha Sybill Carpenter em A perfect day for bananafish, de J. D. Salinger). Expressividade, presença impactante. A pergunta que isso tudo pode suscitar é: um neurótico (ou seja lá que distúrbio o infeliz tenha), apenas enquanto neurótico, acometido pelos paroxismos de seu mal, pode ter algum interesse dramático verdadeiro? Vejamos o caso de Lilian Lemmertz em As deusas, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1972.
Lemmertz vai com o marido, Mario Benvenutti (curioso que noutra vez que vi As deusas fiquei com a impressão de que a ligação entre os dois fosse meio clandestina, de amantes, etc.), passar uns dias numa casa de campo. A casa foi emprestada pela psiquiatra de Lemmertz, Kate Hansen. Hansen não convence nem um pouco no papel. Sua presença não preenche o espaço cênico ou os silêncios da personagem. Sua movimentação corporal é rígida. Sua beleza é, digamos, mais ou menos.) Lemmertz está passando por um transtorno psíquico intenso (síndrome do pânico ou transtorno de ansiedade generalizada talvez fossem diagnósticos aproximados hoje). Suas melhoras e pioras são súbitas e inexplicáveis. A psiquiatra, jovem e inexperiente, confessa que não sabe mais o que fazer naquele caso. Lemmertz pede que a psiquiatra vá ficar com ela. Hansen vai. Benvenutti se força na cama da bela (vá lá...) psiquiatra. Lemmertz a seduz. A coisa acaba num trisal. Hansen não digere bem a situação e sai fora (sai fora do caso clínico também, indicando a paciente a um colega). Lemmertz supõe-se curada. Fim.
Descontada sua grande beleza e extraordinária expressividade (a cena, logo no começo, em que ela é penetrada por Benvenutti é uma das coisas mais eróticas já mostradas no cinema), Lilian Lemmertz só diz banalidades em As deusas. Seus anseios de realização pessoal e suas considerações pessoais são francamente ingênuas, “é uma pena que precisemos de dinheiro mesmo para as coisas mais elementares”, “não vou mais trabalhar para ninguém, agora quero fazer alguma coisa criativa”, etc. Contudo, tudo soa profundo porque Lemmertz tinha aquela presença esmagadoramente densa que todo grande ator tem. Mario Benvenutti acaba sobressaindo no filme porque o que ele diz e faz tem razão e proporção. Sua decepção, enfado e desespero são plenos de realidade, “não posso nem pensar em viver sem ela”. Sua vida profissional já está sendo afetada pelos problemas psíquicos da mulher. A situação lembra a transtornada Zelda Fitzgerald drenando o marido, Francis Scott, até o ponto da aridez (“de três desertos”, v. Nelson Rodrigues), da derrocada, do crack-up. Se observarmos direito, o grande personagem do filme, com contornos de fato trágicos, é o de Benvenutti. Lemmertz é apenas a magnífica sarna que ele (infelizmente) arranjou pra se coçar.
WALTER HUGO KHOURI POR EDUARDO HAAK Posfácio de Carlos Ormond e Andrea Ormond Março de 2023 ÍNDICE Estranho Encontro (1958) Fronteiras do ...