Estranho Encontro (1958), por Eduardo Haak

O amor verdadeiro que triunfa sobre formas espúrias de amor é o tema de Estranho encontro, filme que Walter Hugo Khouri dirigiu em 1958 – um Khouri que, aos vinte e nove anos e dirigindo seu segundo filme (o primeiro, O gigante de pedra, de 1953, não existe mais, exceto alguns fragmentos) mostrava ser um artista ainda inseguro, que deixou correr frouxo uma história repleta de clichês e inverossimilhanças. Pra piorar, os herois do filme (mocinho e mocinha) são interpretados por péssimos atores, Mário Sérgio e Andrea Bayard (o que, de alguma forma, é compensado pela dupla de vilões, Luigi Picchi e Lola Brah, atores notáveis).

Um gigolô com um quê de bom moço (Mário Sérgio), gigolô circunstancial, encontra uma jovem e bela (Andrea Bayard) vagando à noite por uma estrada baldia. Coloca-a em seu carro e a leva para casa. Na verdade esconde-a lá, porque: o caseiro (Sérgio Hingst), que não gosta dele, não pode saber que ele levou uma mulher para casa; a casa não é exatamente dele, mas de uma prima (amásia, na verdade). A jovem, que cultiva um monte de cacoetes estilo Branca de Neve em fuga, demora um pouco até dizer coisa com coisa. Até que chega ao ponto em que consegue contar sua história: orfandade aos dezoito anos, pobreza, subempregos. Um dia, quando trabalhava numa loja de relógios, conheceu Hugo (Luigi Picchi). Por insistência dele logo estavam morando juntos. Na convivência domiciliar o homem gentil e atencioso dos primeiros encontros cedeu lugar a um tirano. Hugo gostava de lhe contar (e recontar, e recontar) como havia perdido uma das pernas, na guerra – a dor de ter trinta e dois estilhaços em brasa incrustados na carne, a gangrena, a amputação sem anestesia. Não havia intimidade física entre o casal, dada a vergonha que Hugo sentia de sua deficiência. A relação era constituída apenas de intimidações e expressões de caprichos dele. Durante um tenebroso passeio noturno em que Hugo insistia em correr imprudentemente com o carro, a bela escapou, ficou vagando pela estrada e, enfim, encontrou o gigolô circunstancial. 

O gig e a bela pobretona fujona (das garras de Picchi, sensacional com um sobretudo preto de vinil, com uma baita cara de vampiro – uma mistura de Michel Temer e Carlos Zara –, arrastando-se de bengala pelas matas da São Bernardo do Campo de 1957) se apaixonam. Gig a acomoda num depósito na chácara. O caseiro, que: havia lido no jornal o anúncio da fuga da moça, com uma promessa de recompensa; estava desconfiado de alguma coisa; detestava mesmo o amante da patroa, não demora a descobrir o esconderijo e telefona para o Luigi Picchi, o Vampiro de São Bernardo. Nisso a patroa (Lola Brah) aparece e percebe que ali tem coisa – o jovem amante está distante, irritadiço, etc. Vai farejando chácara afora e chega ao esconderijo, onde o Vampirão está tentando convencer a Branca de Neve a voltar com ele; a bela foge para um bambuzal, o vampiro a encurrala; Lola Brah aparece e diz, chega, deixe a moça. Acolhe maternalmente a nova amada de seu, agora, ao que tudo indica, ex-amante; não só acolhe como ainda empresta o próprio carro para que o novo casal siga para a lua de mel que mais lhes aprouver; depois de tanta generosidade, faz, sozinha, uma cena de mulher abandonada, chorando numa escadaria.

Tento me colocar na pele de Khouri e imaginar as considerações que ele foi fazendo para avançar do mundinho melodramático e mocorongo de Estranho encontro para o mundo adulto de Noite vazia (incrível pensar que apenas seis anos separam esses dois filmes). Não é inverossímil que Khouri tenha chegado à conclusão de que, para um artista se firmar e amadurecer aqui, tem de jogar duro, ou seja, não ter a mínima complacência com o brasileiro médio, seu imaginário, suas expectativas, suas macumbas, seus carnavais, suas superstições. Ele, o artista ambicioso, não deve se afastar um milímetro da convicção de que o brasileiro é um tipo maroto que manipulará você para que você seja complacente com sua debilidade, sua inépcia, sua falta de atrativos. O brasileiro, portanto, mais do que merecer, precisa ser tratado na ponta do chicote.

Walter Hugo Khouri, conhecido por sua elegância no trato pessoal, galante com as atrizes que dirigia, empunhando um chicote? Não se deixem enganar pela aparente delicadeza de Khouri. Afinal, dirigir, em última análise, é manipular e mandar. É discriminar, dizer sim ou não. Dirigir, em suma, é a prevalência do indivíduo sobre a massa amorfa da coletividade. Só se faz isso – e se faz bem – com um chicote na mão (ainda que escondido) e com uma salutar dose de arrogância (ainda que ocultada sob uma camada superficial de gentileza). Claro que Khouri atraiu, com isso, a má vontade de seus pares e a acusação idiota, dentre outras, de que seus filmes eram pouco brasileiros (até Leon Cakoff, com uma nada salutar arrogância, tocou na questão na entrevista cedida por Khouri ao programa Vox populi, TV Cultura, 1982). Passadas essas discussões todas, temos hoje a obra de Walter Hugo Khouri. Quando vemos seus filmes, com as naturais oscilações de qualidade (alguns grandes, outros modestos), percebemos que estamos não diante de um punhado de coisas inconexas, mas de uma obra, com a coesão e a organicidade de uma obra. Sorte nossa de que Khouri tenha tido a vocação, o tônus e os meios para realizá-la.


Fronteiras do Inferno (1959), por Eduardo Haak

Luigi Picchi, o primeiro ator propriamente khouriano, predador, masculinidade tóxica, italiano casca grossa demais para encarnar algum futuro Marcelo, comanda uma mina de diamantes no interior do Mato Grosso. Comanda como manda o figurino – semiescraviza os garimpeiros na base de dívidas contraídas com itens de primeira necessidade, que são vendidos monopolisticamente que ele. Essas dívidas, claro, nunca poderão ser pagas, porque Picchi compra os diamantes extraídos da mina a preço vil. Fugir não é uma opção para os garimpeiros – além do regime de terror imposto por Picchi (repressão, castigos corporais, execuções sumárias, etc.), quase todos são criminosos foragidos da justiça e o interior do Mato Grosso em 1959 oferece alguma possibilidade de eles permanecerem em lugar ignorado e não sabido.

Um forasteiro, Paul (Hélio Souto), aparece no lugar num jipe, alegando estar procurando o caminho para a Bolívia. É abordado por um dos garimpeiros, que tem um plano de fuga para ele e a filha (e um diamante de alta quilatagem que ele encontrou e pretende desviar). Paul diz que topa ajudá-lo e pergunta onde pode encontrar gasolina. Para na vila e é interpelado por Picchi e seus capangas, que espancam o garimpeiro até a morte (desconfiam do diamante desviado) e tiram uma peça do motor do jipe, colocando Paul virtualmente na posição de refém. Eles querem saber o real propósito do forasteiro, algo que eles não vêm a saber. Na verdade Paul tem uma razão muito pessoal para ter ido àquele lugar, razão essa que é revelada no final do filme, momento em que os maus (Picchi, capangas, etc.) se entredevoram e destroem-se e os bons finalmente conseguem escapar do inferno.

Quem define assim aquele lugar – inferno – é a cafetina (Lola Brah) que tem sua casa de entretenimento ali no garimpo. Lola diz a Paul que já teve casas em locais melhores – Paris, etc. –, mas que as pessoas, onde quer que se esteja, são sempre as mesmas, igualmente ruins. O bordel tem os tipos pitorescos de sempre, com destaque para um padre que toca violão para entreter os frequentadores, geralmente com a Bíblia apoiada no instrumento, a qual lê enquanto toca. A filha do garimpeiro morto disse a Paul (com quem acaba se envolvendo romanticamente) que a única pessoa confiável naquela vila era a tal cafetina. Aliás, as mulheres se destacam no filme – por observarem e deduzirem melhor do que os homens (aqueles, pelo menos), quando o momento apropriado chega protagonizam os atos decisivos que acabam levando o garimpo ao colapso.

Walter Hugo Khouri se sai muito bem nesse que foi o terceiro filme dirigido por ele. Tirando alguns momentos em que pequenas inverossimilhanças ameaçam a credibilidade da narrativa (por exemplo, Picchi e os capangas não procuram direito o tal diamante desviado, o que seria relativamente fácil de fazer), a história é envolvente, dinâmica, coesa. O elenco, no geral, é bom. Fronteiras do inferno supera bastante o filme anterior de Khouri, Estranho encontro, e creio que se equivalha em termos de qualidade ao filme posterior, Na garganta do diabo, que conta a história de um grupo de desertores da Guerra do Paraguai que vivenciam as agruras da lei da selva, lato e strictu sensu. Aliás, a semelhança entre os dois filmes não se limita apenas à qualidade. Ambos mostram o mundo como um inferno do qual as chances de escapatória sempre são mínimas (a presença de diabo e inferno nos títulos não é casual). Ainda que não tenha aquele estilo que reconhecemos como estilo do Walter Hugo Khouri, Fronteiras do inferno é profundamente khouriano em seu tema, desdobramentos e conclusões.


Na Garganta do Diabo (1959), por Eduardo Haak

A deserção em tempos de guerra é invariavelmente punida com a morte. No caso da Guerra do Paraguai os comandantes militares nem tinham de se dar ao trabalho de ir atrás dos desertores para lhes infligir a penalidade máxima – mais simples deixá-los vagar pelos charcos infectos da tríplice fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai), onde certamente morreriam de tifo, cólera ou malária. Enquanto a morte não chegasse, restava aos desertores saquear o que ainda fosse possível (uma vaca adoentada ali, um porco isolado acolá) ou tentar, por exemplo, algum acordo de sobrevivência com os índios locais. É isso que inicialmente um quarteto de desertores faz (dois brasileiros, um paraguaio e um nativo, pertencente sabe-se lá a qual lado beligerante) – chegam a uma tribo, oferecem armas ao cacique, etc. Tudo parece se encaminhar a uma acomodação razoavelmente amistosa, quando então o nativo (índio também) agregado ao tal quarteto mostra ser não um bom, mas um mau, um péssimo selvagem – mata uma menina da tribo para lhe roubar um colar. Luigi Picchi, que lidera o grupo, dá uns safanões no bugre latrocida (Picchi, além da pinta de vampiro, tem também algo do jeito arisco de ser do Moe, dos Três Patetas) e arranca o colar dele. Sabe que agora o grupo tem de sair dali o quanto antes, já que os índios da tribo virão atrás deles para se vingarem.

Encontram uma fazenda habitada por um velho e alquebrado pai (Fernando Baleroni), duas belas filhas (Edla Van Steen e Odete Lara) e um empregado cego (Sérgio Hingst, usando uma peruca ridícula que o deixa com pinta de Corcunda de Notre Dame). Nada há a ser saqueado ali. Há um único porco, que Picchi ordena que seja abatido e preparado para a trupe. O grupo banqueteia-se e embebeda-se. O outro militar brasileiro desertor, alferes (André Dobroy), começa a manifestar sintomas do cólera. Picchi determina que ele agonize e morra longe da casa, e assim é feito – Edla e Hingst, aparentemente sem medo de se contaminarem, conduzem o semimoribundo para um descampado. É chegada a hora de dormir e Picchi diz que logo mais escolherá com qual das duas filhas beldades irá ficar (depois dos prazeres da mesa, os da cama, claro). 

No meio da madrugada bate na porta de Odete. Ela abre a porta. Picchi diz que está com a mão machucada e que ela precisa fazer um curativo. Dessa proximidade física advém outra e a lebre é abatida (v. Carlos Eduardo da Corte Imperial), sem que haja propriamente resistência por parte da lebre. Não só não há resistência como Odete se apaixona pelo vampirão Picchi. Sugere fugir com eles, os desertores, em posse de certa quantidade de ouro que o pai ainda tem (que coisa feia, hem?, dona Odete, roubar o pai e ainda virar mulher de um bandoleiro). Paralelamente a isso, a outra irmã, Edla Van Steen, está tentando salvar o alferes, à base de hidratação, etc. O que parece improvável acontece e o alferes começa a se recuperar. 

O barulho da artilharia paraguaia começa a se fazer presente, o que atemoriza a todos e leva o desertor das fileiras do Solano López a uma crise histérica – embebedado, sobe numa mesa e chuta tudo enquanto canta repetidamente o trecho de uma guarânia. (A atuação de José Mauro de Vasconcelos é impressionante, nessa e em outras cenas. É curioso que esse filme abrigue dois atores que vieram a ser de fato conhecidos como escritores, ele e Edla Van Steen. José Mauro foi ator constante nos primeiros filmes de Walter Hugo Khouri, estando presente em Fronteiras do inferno, 1959, Na garganta do diabo, 1960 – o filme aqui analisado – e A ilha, de 1963.) O grupo discute se é menos arriscado permanecer na fazenda ou procurar outro lugar, dada a proximidade do exército inimigo. O impasse não se resolve. Os índios (da tribo V for Vendetta) finalmente encontram os desertores. Picchi arrasta o mau selvagem para fora de casa e o entrega ao vingadores. Contudo, o colar que foi roubado da indiazinha morta está no bolso de Picchi e o mau selvagem malandramente o puxa para fora. Picchi ainda protesta, “não fui eu!, não fui eu!”, mas é cercado e levado pela indiada, que o pune cobrindo sua cabeça com a roupa ensanguentada da indiazinha e o largando à beira das Cataratas do Iguaçu, de onde fatalmente ele despenca. Cosa Nostra, Estado Islâmico e Vincent Price em Dr. Phibes aplaudiriam e pediriam bis, como na ópera.


A Ilha (1963), por Eduardo Haak

Descontadas as fragilidades patentes de A ilha, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1963 – uma história meio mal-ajambrada de um grupo de sibaritas que se mete a ir atrás de supostos tesouros perdidos em Ilhabela –, temos ali a grande presença de Luigi Picchi, o primeiro ator propriamente khouriano (trabalhou em Estranho encontro, 1958, Fronteiras do inferno, 1959, Na garganta do diabo, 1960, A ilha, 1963, O último êxtase, 1973). Luigi Picchi, aliás, poderia ter protagonizado um notável filme de vampiro, algo que o cinema brasileiro, infelizmente, não chegou a fazer – physique du rôle para isso ele tinha de sobra (fisicamente ele era uma mistura de Carlos Zara, Doca Street e do ex-presidente Michel Temer). 

Picchi, suas obsessões, sua ganância, sua vilania assumida, é um daqueles tipos humanos dotados de tamanha força centrípeta que não tem como não fazer o mundo orbitar em torno de si. Todos seus atos são uma demonstração de máximas como o homem é o lobo do homem – ele faz, por exemplo, uns meninos que o ajudaram a transportar coisas para o barco (que vai ser usado na busca pelo tal tesouro) disputarem a tapas o dinheiro dado de caixinha, obrigado, arremessando a nota ao mar, “a competição é sempre benéfica”, diz ele. Trata os empregados na base de insultos e bofetões. Não hesita em descarregar seu revólver contra um gato que se aproxima do aquário onde estão seus peixes betta splendens (raça conhecida, aliás, por sua agressividade). Como está chegando o momento de os peixes acasalarem e ele espera conseguir uma coloração inédita na cria, Picchi leva o aquário-trambolho consigo, no barco. 

O grupo de sibaritas chega à ilha onde supostamente há o tesouro escondido. Arma ali suas barracas e se entrega à esbórnia (bebedeiras, etc.). Picchi, contudo, mantém-se aprumado, estudando mapas e planejando incursões pela ilha. A caça ao tesouro, contudo, quando posta em prática, vai parecendo cada vez mais uma empreitada fantasiosa. Conflitos emergem. Um dos sibaritas, Mario Benvenutti, morre afogado ao buscar o tesouro por conta própria. O barco desaparece, com todos suprimentos e água potável de que o grupo dispunha. Uma das convivas adoece ao ingerir a água salobra disponível na ilha. Alguém sugere que bebam a água do aquário. Picchi cede meio copo à moça que adoeceu, e só. Se for pra alguém morrer, que morram as pessoas e vivam seus peixes.

A imagem de um aquário plantado no meio de uma praia está entre as mais inspiradas já concebidas por Walter Hugo Khouri. Tem algo das desconcertantes concepções visuais de René Magritte, além de uma grande força simbólica – o mar interminável contrastando com o espaço exíguo onde dois peixes betta buscam-se, cada qual aprisionado em seu compartimento. Metáfora da condição humana? Não é difícil se chegar a uma conclusão como essa. Khouri frequentemente usou em seus filmes símbolos que apontam para esse significado – o urso enjaulado em Eros, o deus do amor, o cavalo abatido a tiros em O corpo ardente, a tela Os amantes, de Magritte, na abertura de Convite ao prazer.

A aventura se encerra quando um barco de pescadores avista o grupo e o resgata. No meio da travessia Picchi percebe que se esqueceu do aquário, tenta fazer os donos do barco voltarem, mas eles dizem não. Na praia, o gato que habita a ilha (e que sobreviveu à má pontaria de Picchi) derruba o aquário, devora os bettas e decide ir descansar em seu cafofo, uma caverna com as coisas todas que as cavernas costumam ter, acrescidas do tal tesouro que Picchi e os agregados não conseguiram achar. Uma canção de ninar, executada num primitivo sintetizador, é tocada enquanto o felino se acomoda entre peças de ouro e pedras preciosas. Bisonho, porém simpático.


Noite Vazia (1964), por Eduardo Haak

Desconhecidos íntimos são aqueles desconhecidos com quem eventualmente estabelecemos algum tipo de contato e para quem podemos chegar a dizer (e de quem podemos ouvir) coisas surpreendentemente íntimas. Foi Nelson Rodrigues quem criou a expressão. Aliás, certas intimidades (e certas sinceridades) parece que só são possíveis entre desconhecidos – se você não vai ver mais aquela pessoa, pode confessar sem atenuações a antipatia que sente por ela, por exemplo. É um tipo interessante do ponto de vista dramatúrgico. Na verdade o tipo é bem mais do que interessante, sendo o agente dramático próprio (talvez o único possível) das situações fugazes de que nossas vidas também são feitas. Em Noite vazia, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1964, o desconhecido íntimo tem um papel fundamental.

Numa noite como qualquer outra, dois amigos, Gabriele Tinti (Nelson) e Mario Benvenutti (Luís), saem de carro por aí com o objetivo de pegar mulher. O de Benvenutti, notadamente, é esse. Tinti mostra-se hesitante, entediado que está com a rotina de farras dos dois. Confessa que, naquela noite, preferia ir a uma festa de aniversário, “daquelas bem caipiras, com parabéns a você e tudo”. Na falta de uma festa de aniversário à mão, os dois dão uma parada num bar onde são abordados por uma jovem alcoolizada (a bela Marisa Woodward). Dispensam-na (“você é muito normal”, “hoje não estou bom para consolar ninguém, preciso que alguém me console”) e vão para outro lugar, onde logo percebem que estão sobrando (pessoas bem mais jovens do que eles, rock, etc.). Acabam indo a um restaurante japonês, onde casualmente encontram um amigo de Benvenutti acompanhado de duas prostitutas, Norma Bengell (Mara) e Odete Lara (Cristina). O sujeito, que se chama Lico, está pra lá de Nagasaki (bebeu muito saquê) e acaba apagando ali mesmo. Benvenutti e Tinti arrebatam as moças e as levam para a garçonnière deles.

No período de algumas horas (até o amanhecer) que eles permanecem juntos nada de extraordinário acontece. Mario Benvenutti e Odette Lara parecem experimentar algum prazer em se provocarem e se agredirem verbalmente, autorizados a isso que estão pela condição de desconhecidos íntimos um do outro. Gabriele Tinti conserva-se deprimido e introspectivo. Norma Bengell aparenta estar feliz, de alguma forma, e sem nenhum motivo em particular para estar (em algum momento ela confessará a Tinti que para ela tudo sempre está bom e que ela gosta de ser exatamente do jeito que é). Cada um deles lida com a situação de radical intranscendência daquela noite como pode, seja cochilando, tomando chuva (no terraço do apartamento), vendo filme pornô (O presente do Papai Noel), folheando revistas, etc. Contudo, se observarmos bem, a personagem de Norma Bengell se sai consideravelmente melhor do que os outros nesse embate com a vacuidade. A razão disso reside no fato de sua interioridade ser mais coesa do que a dos outros três. O barulho da chuva lhe traz a terna lembrança de um momento quando era menina e observava a mãe preparando alguma coisa num fogão a lenha (o ruído da chuva e o ruído de alguma coisa sendo frita são de fato semelhantes). Está implícita nessa conexão que lhe ocorre a continuidade essencial entre menina do passado remoto e a mulher de hoje. Quem tem a si mesmo se basta, talvez possamos dizer isso a respeito da personagem de Norma.

À sua maneira o rude e enfastiado Mario Benvenutti percebe essa distinção, esse caráter íntegro e benévolo da personagem de Bengell. Ao pagar Odete Lara pela manhã, ele diz, “isso é para o seu fundo de velhice, que logo você vai estar precisando”. Para Norma Bengell ele diz, quase gentil, “isso é por seu espírito de colaboração”. Apesar de seu ajustado senso de proporções, Benvenutti sabe que a felicidade é uma vocação pessoal e intransferível, sorte de quem tem, azar de quem não tem, Bengell nada pode ensinar a quem quer que seja, ela que seja feliz com a felicidade dela. 

Depois de deixá-las numa Praça Roosevelt que ainda era um amplo descampado (sua forma atual data de 1970), Benvenutti e Tinti seguem pela Avenida Nove de Julho (vê-se o MASP em construção quando eles se aproximam do túnel). Benvenutti fala sobre uma festa que ocorrerá no dia seguinte, que uma tal de Renata vai estar lá, o que desperta algum interesse em Tinti. Benvenutti pergunta se é para deixá-lo em casa, Tinti diz que prefere ficar naquela pracinha, que vai caminhar um pouco, que não adianta ir dormir agora, que dali a três horas ele vai ter de estar no trabalho. Benvenutti deixa o amigo na Avenida Brasil (com as mesmas casas de hoje, mas ainda residenciais). Tinti observa uma árvore, se próxima dela. A câmera enquadra a árvore inteira, esse símbolo axial (eixo do mundo), vertical, ascensional. Embora um símbolo não signifique exatamente isso ou aquilo, sendo antes uma matriz de intelecções (Susanne K. Langer), o sentido do símbolo árvore ali é amplamente eloquente – talvez não haja saída para nossas angústias no plano da pura horizontalidade. Mas talvez haja se olharmos para o alto. Talvez.


O Corpo Ardente (1966), por Eduardo Haak

O corpo ardente, de 1966, foi o filme dirigido por Walter Hugo Khouri que mais o satisfez. Sua personagem principal, interpretada por Barbara Laage, poderia ser chamada de Marcelo de saia. Embora não seja predadora como os Marcelos (sobretudo os de Roberto Maya) e tenha uma feição introspectiva, Laage tem o mesmo ardor, o mesmo desalento, a mesma ânsia pelos absolutos. Em nenhum outro filme de Khouri uma personagem feminina tem tamanha amplitude e centralidade. Selma Egrei é a atriz principal de O anjo da noite, de 1974, mas divide bastante o protagonismo com Eliezer Gomes, com as crianças endiabradas à la The turn of the screw, com os animismos todos presentes na casa onde vai trabalhar. As filhas do fogo, de 1978, é protagonizado por uma penca de mulheres, algumas das quais em versão desencarnada. Geneviève Grad protagoniza O palácio dos anjos, de 1970, mas o escopo de sua personagem (a mulher bonita que sai de uma situação de submissão, secretária eficientíssima, e conquista a alforria se prostituindo) é bem mais modesto que o de Barbara Laage em O corpo ardente

Laage, uma mulher atraente passada dos quarenta e cinco, percebe-descobre que o amante, Mario Benvenutti, se desinteressou dela. O marido de Laage, interpretado pelo Pedro Paulo Hatheyer, também está afundado em pasmaceira com a amante, interpretada por Lilian Lemmertz. Lemmertz se tornou amarga e reclamona. Os dois passam longos períodos na sala do apartamento dela, olhando a TV, como qualquer casal casado corroído pelo tédio. No silêncio birrento de Lemmertz ecoa sua queixa fundamental – ela quer que Pedro Paulo se separe da mulher para ficar com ela, aquela história banal de sempre, o apego à crendice de que o casamento vai extinguir o vazio que as pessoas sentem no peito, etc. O filme poderia dar um encalhada aí, se Khouri desse mais atenção a esse draminha de ser a outra, mais do que o tema merece. Khouri, no entanto, tinha expertise em matéria de upper class. Drama de corno, sofrência, é, sem dúvida, ideologia de classe média, ideologia no sentido de falsa consciência, como dizia a besta do Carlos Marx (v. Nelson Rodrigues). (Citando outro filme de Khouri, a agressiva possessividade de Helena Ramos em relação ao marido, Serafim Gonzalez, em Convite ao prazer, de 1980, contrasta com o laissez faire afetivo de Sandra Brea em relação a Roberto Maya, estes dois formando o casal upper do filme, aqueles, o de classe média que tem discussões prosaicas durante o jantar, discussões sobre, por exemplo, a troca de cortinas de casa, “ficaram um pouco caras, mas vão durar bastante”, etc. Helena Ramos, por trás de sua discurseira moralista contra a infidelidade, “rico não tem vergonha na cara”, etc., está apenas cuidando do que é dela, sendo seu status de mulher casada seu único capital. Brea, rica de nascença, não precisa ser ciosa nesse sentido.) A upper class tende a ter, em relação a assuntos sexuais, uma atitude mais para a máxima de Terêncio, “nada do que é humano me é estranho”. Pedro Paulo Hatheyer sabe que pode rifar a mulher porque amante é uma substância perecível como qualquer outra que existe sobre a Terra. Estamos todos, homens e mulheres, no mesmo barco, na mesma ratoeira, qualquer metáfora do tipo (“não há saída”) serve. Lilian Lemmertz e suas reclamações de mulherzinha fulguram por um breve instante na tela e desaparecem (“sorry, periferia”, como dizia o Ibrahim Sued), e Khouri aponta sua câmera para o que/quem de fato importa.

Passado o choque de perceber-descobrir que o amante havia se desinteressado dela, Barbara Laage decide viajar com o filho. Seu destino é Itatiaia, região montanhosa na tríplice fronteira entre os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Fazia anos que ela não ia à casa, que pertence à sua família desde que ela era criança. “Está quase tudo como antes, só os móveis mudaram um pouco”, ela diz à criada. Sempre há nesses reencontros com o passado um anseio restaurador pelo eterno, definido por Boécio como posse plena e simultânea de todos os momentos. Talvez cheguemos a intuir que para além do tempo está a eternidade que o abrange. Por outro lado, o que de fato vemos à nossa frente são os vazios e as ausências que parecem aumentar à medida que o tempo passa. Não temos garantia de que somos algo além de um rudimentar conjunto reflexos condicionados, uma fantasmagoria momentânea. Se quisermos arriscar ir além, teremos de nos contentar com o universo simbólico, com um símbolo ou outro, necessariamente insatisfatório e conflitivo, alusivo a nosso possível devir. 

Laage sobe com o filho, Wilfred Khouri, um garoto de seus oito, nove anos, pela trilha que vai até o Pico das Prateleiras. Encena, ludicamente, sua coroação como rei, sentando-o no trono de pedra (uma formação rochosa de fato parecida com um trono). A ludicidade da coisa não exclui o óbvio investimento libidinal que ocorre ali, Jocasta entronando Édipo, etc. Na volta, os dois avistam o cavalo preto que fugiu de uma fazenda próxima, que está sendo procurado pelo fazendeiro, Sérgio Hingst, e seu capataz, David Cardoso. Hingst, algumas cenas antes, passou pela casa de Laage e perguntou aos criados se eles tinham visto o cavalo. Ele disse que antes o animal comia em sua mão e que, de um dia para o outro, parece ter enlouquecido. Há uma troca de olhares entre Hingst e Laage, hostil de parte a parte. Hingst parece dizer, “é sua presença nefasta aqui, bruxa, que enlouqueceu o bicho”. Não se trata de uma simples superstição de roceiro, como a história acabará por demonstrar. Laage parece mesmo exercer influência sobre os cavalos, que ficam desassossegados na sua presença (“a mulher é a senha do motim”, como disse Walter Franco).

O cavalo preto correndo livre pela paisagem rochosa de Itatiaia se torna o totem de Laage. Ela tenta protegê-lo da dupla que está em seu encalço. Torce por sua fuga. Contempla-o como algo que ao mesmo tempo está perfeitamente instalado no mundo natural (como nunca o ser humano consegue estar) e como um símbolo alusivo ao mundo dos deuses (um mundo também inacessível a nós). Seu marido, Hatheyer, vem visitá-los e traz uma filmadora de presente para o filho, Wilfred Khouri, que, fisicamente muito parecido com o pai (Walter Hugo), se torna uma espécie de O pequeno cineasta. A filmadora super-oito leva Laage e Hatheyer a um mundo lúdico que parece de alguma forma restaurá-los, devolvê-los a uma espécie de plenitude infantil, no melhor sentido que a palavra infantil pode ter (“se não fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus”, v. Jesus Cristo). Um filma o outro fazendo caretas engraçadas, usando óculos ridículos, encenando suicídios e homicídios de maneira cômica. Apesar de todos pesares, amantes, etc., vemos que há muita ternura e afeição entre os dois. A presença da câmera também introduz em O corpo ardente a tal da metalinguagem, o cinema que discorre sobre o cinema. O desfecho do filme, aliás, irá por aí, falarei disso um pouco adiante.

A dupla fazendeiro-capataz apela a uma égua no cio para atrair e laçar o cavalo fujão. É inevitável pensar em nossos próprios aprisionamentos decorrentes de nossos impulsos sexuais (o filme de Walter Hugo Khouri de 1979 se chama O prisioneiro do sexo). O cavalo se aproxima da égua, a cobre e escapa mais uma vez. Hingst, por fim, vence o animal, abatendo-o a tiros, depois de ter sido arrastado por ele após laçá-lo. (O mundo da cultura vence o mundo da natureza, etc.) Laage segue o rastro de sangue e honra a memória de seu profanado totem depositando flores sobre uma pedra. O oráculo pronunciou sua sentença, Laage sabe que nada mais lhe será dito, é hora de voltar para São Paulo (Laage ainda vê uma imagem síntese enquanto abastece o carro para pegar a estrada, um cavalo atado a uma carroça – estático, prosaico, servil).

As artes narrativas, cinema, livros, etc., servem para restaurar uma relativa plenitude do real que não teria como ser restaurada de outra forma (alguns sonhos exercem também essa função). Laage está de volta a seu mundo comum (contraposto ao mundo especial da aventura, como definiu Joseph Campbell em O herói de mil faces), suas festas burguesas com suas discussões pedantes sobre pintura, os acenos de possíveis novos amantes, etc. O filho brinca numa das salas da casa com um projetor, que exibe na tela o filme rodado em Itatiaia – as brincadeiras dela e do marido, o cavalo preto correndo pela estrada, etc. Apesar de se tratar de eventos de um passado então bem próximo, eles são isso, passado, portanto irrecuperáveis e inacessíveis. Sim, talvez o que não esteja mais presente no tempo, aqui e agora, continue a existir numa espacialidade ainda inacessível a nós, mas não temos como ter garantias ou certezas a esse respeito. Laage observa o filme de maneira quase furtiva. As cenas a divertem e enternecem. Vemos o filme de Laage vendo o filme e nos enternecemos com seu enternecimento. Estamos todos no mesmo barco, na mesma ratoeira, etc. Shakespeare dizia que somos feitos da mesma matéria que os sonhos. Walter Hugo Khouri parece dizer que, de alguma forma, somos feitos da mesma matéria que os filmes – substância fotossensível fixada em celulose.


As Amorosas (1968), por Eduardo Haak

A cena é comum. Um jovem (Paulo José, Marcelo, eu, você, todos nós), mas já não tão jovem que possa apelar a alguma complacência do tipo, o.k., erros típicos da juventude, da imaturidade, ou seja, um cara que já passou dos vinte e cinco e continua estudando, prestes a jubilar, sem qualquer perspectiva profissional ou existencial factível, caminha a esmo por São Paulo, que em 1968 já era a mesma matriz de impossibilidades infinitas que é hoje. Marcelo (eu, você) olha umas vitrines na Avenida São Luiz com aquele olhar de quem sabe que não vai encontrar o que está procurando (provavelmente nunca, em nenhum lugar). Cogita pegar um ônibus, conta o dinheiro e vê que dá para um táxi. (Enquanto a grana dá para um táxi, talvez dê pra ir levando.) Vai ao prédio onde a irmã (Lilian Lemmertz, linda e inexpugnável como sempre) mora, na esquina das ruas Oscar Freire e Ministro Rocha Azevedo. É recebido carinhosamente por ela, fala sobre a vida, recebe uns conselhos, toma umas leves reprimendas, flerta com a amiga que mora com a irmã (Jacqueline Myrna), senta-se com ela na parte externa da cobertura e ouve o que ela tem a dizer, toda animada – que sua carreira de atriz finalmente está deslanchando, etc. Marcelo parece razoavelmente bem instalado ali, naquele aspecto momentâneo da realidade, sentado na parte externa de uma cobertura nos Jardins, tomando café, ouvindo o falatório narcisista da pseudoatriz, meio que se deixando levar pela relativa atração que sente por ela, uma fulana que obviamente pertence à segunda divisão, em todos os sentidos, mas que de repente até que rende uma boa trepada (a vitalidade dos vinte e cinco anos nos impõe raciocínios e decisões do tipo). A aspirante a atriz em nada difere das arrivistas atuais. Hoje, em vez de extra da TV Tupi, figurante do Zé do Caixão, seria influenciadora digital, participante de reality show, faria harmonização facial e, last but not least, diria já ter sido abusada sexualmente (pauta boa para cavar entrevista). Marcelo, por fim, morde uma grana da irmã (ambos lidam com a situação com considerável compostura) e volta para seu cantinho no mundo, um quarto nos fundos da casa bacana de um amigo rico, cedido por este sabe-se lá até quando, com combustível (grana) para mais alguns dias. Ali estão os discos de Marcelo (Mozart, A Love Supreme, do John Coltrane, Musikantiga), os livros (Heidegger, Spinoza, D. H. Lawrence, Céline, revista Mad), os lençóis amarrotados, as cogitações (algumas rabiscadas na parede, à semelhança dos presídios). Clarice Lispector dizia que ela era uma pergunta. Marcelo talvez seja um dasein heideggeriano, que simplesmente está-aí (e que não está-nem-aí, no mais das vezes). O ser e o tempo permanece em sua pilha, mas, milênios antes de Herbert Vianna, ele já sabia que os livros na estante já não têm tanta importância assim.

O negócio é diversificar os investimentos, inclusive (ou sobretudo) os libidinais. Isso soa mais Palhares (o canalha rodriguiano que não respeita nem as cunhadas) do que D. H. Lawrence, de quem Marcelo sem dúvida está mais próximo. De qualquer forma, ali está a Aneci Rocha, aluna de um curso qualquer de comunista (sociologia, geografia, pedagogia, etc.) na USP, cercada de amigos com aquelas caras de maus-bofes que o Lula costumava exibir em 1983, roisfejão do trabaiadô. A moça é até que legal, tem sensibilidade e inteligência para perceber Marcelo em sua totalidade, suas contradições, polarizações, etc., além de obviamente não levar tão a sério seus colegas uspianos e seus maus-bofes (em questão de um ou dois anos a maioria estará com a cara estampada em cartazes de Terroristas procurados; espero que Aneci tenha sido poupada dessa tragédia inútil). 

A diferença entre Aneci e Jacqueline Myrna é que a segunda é tosca, primária, raiz, e talvez por isso mesmo tenha uma conexão maior com as coisas que de fato são reais. Provavelmente, por ser uma criatura primitiva, é uma amante mais crepitante do que a Aneci e suas abstrações uspianas. Não que isso proporcione alguma satisfação duradoura – não proporciona. Marcelo, após ver o vergonhoso desempenho de Myrna num programa de TV, tenta chamá-la à realidade, “estava horrível, isso não vai te levar a nada”, etc. Ela se defende, o que significa defender vigorosamente as ilusões que nutre a seu próprio respeito. (Apenas essas ilusões a separam de uma realidade à qual ela não quer ser chamada de volta, já que a realidade que lhe cabe provavelmente é a de uma vidinha sórdida em algum bairro periférico e lamacento, emprego ruim, etc.) Para mostrar que está por dentro, que não é mais uma criatura jogada fora, aceita entrar na perua Veraneio de uma turma pra lá de duvidosa, que fazia sabe-se lá o que ali nos estúdios da Rede Bandeirantes (atual Band), turma essa capitaneada por um Stênio Garcia cheio daquela vitalidade de búfalo da ilha de Marajó de que falava Nelson Rodrigues. Marcelo, que acha que não tem muito a perder, resolve ir junto. Os dois são levados a um bosque, onde são ampla e festivamente esculachados por Stênio e sua turma. Jaqueline é estuprada, Marcelo apanha até não poder mais. 

O que são exatamente Stênio e sua turma só pode ser conjecturado. Talvez formassem um grupo de quebra-galhos, nebulosa e parcialmente agregado ao canal de TV. Não é impossível imaginar alguns deles como informantes do DOPS, banda podre da polícia civil, esquadrão da morte, CCC, etc. Independentemente de sua natureza nebulosa, o grupo é uma alegoria de que o poder bruto (ou seja, violência bruta) no fundo determina o que vai e o que não vai ser, o que pode e o que não pode, indiferente aos possíveis protestos de Marcelo, Jacqueline ou Aneci (ou meus ou seus). 

Marcelo sobrava na realidade 1968 como sobraria hoje. Mas o senso de desimportância que fatalmente vem a acometer os Marcelos talvez seja mais atroz atualmente. Em 1968 parece que o mundo não estava tão saturado, com os canais tão obstruídos – o mundo não era feito à imagem e semelhança das multidões de mocorongos, toscos e ignorantes que hoje entopem tudo, em todos os lugares. Os ajustados tinham algum interesse em emitir opiniões, ainda que críticas, sobre os desajustados. Viam Marcelo com alguma empatia, acenavam com as possibilidades de realização oferecidas pelo mundo do trabalho, do esforço dirigido, etc. Mas esse diálogo se esgotou há muito tempo, com cada lado se assumindo como indigno à sua maneira. Trabalhar, afinal de contas, é aderir a um padrão de consumo que, em algum momento (desemprego, etc.), vai arrastar você a um mundo de dívidas e inadimplências. Isso sem falar na filha da putagem reinante no mundo corporativo, etc. Você está certo, Marcelo, melhor mesmo não sair do seu quartinho, ainda que isso implique em ser pela vida toda um vadio sustentado pela irmã. Na pior das hipóteses sempre podemos abraçar a mendicância, não é mesmo? Diógenes vivia num barril, Diógenes era um homem, logo todo homem pode perfeitamente viver num barril, premissa maior, premissa menor, conclusão.


O Palácio dos Anjos (1970), por Eduardo Haak

A prostituta é uma das personagens dramáticas fundamentais porque expressa a implacabilidade de uma lei – a lei que define o dinheiro como o grande mediador das relações entre homens e mulheres. (Talvez a coisa vá além disso e a prostituta seja a grande metáfora do mundo, do peso maciço das necessidades naturais – sobrevivência, reprodução, etc. –, mas também de suas exorbitâncias, luxurias, etc.) É uma personagem incômoda porque não deixa ninguém esquecer que mesmo as mulheres honestas (casadas, etc.) têm mais semelhanças do que diferenças com as vadias (nenhuma mulher honesta pode realmente afirmar que nunca foi para a cama por dinheiro – e nenhum homem pode afirmar que nunca pagou por uma mulher). Sendo uma personagem altamente conflitiva, que habita a fronteira nebulosa entre dois mundos (mundos que se pretendem opostos, mas que, afinal, não são tão opostos assim) – ou seja, sendo uma personagem que exige uma calibragem bastante precisa, difícil de se obter, a prostituta pode facilmente ser sentimentalizada, cair no kitsch (Fellini incorre exatamente nesse erro em Noites de Cabíria). Aliás, o kitsch impera em se tratando do assunto. Relatos pitorescos sobre prostituição são kitsch puro – condutas supostamente transgressoras (que não transgridem coisa alguma), suposta expertise em sem vergonhices que depois serão vendidas para donas de casa apimentarem seus casamentos, supostas revelações de segredos (que nada têm de secretos), suposta moral da história “fui fundo na degradação, mas superei isso tudo” (nada mais cansativo – e kitsch – do que relatos rehab estilo Walter Casagrande Jr.), etc. As prostitutas, tão semelhantes às mulheres normais, também costumam se assemelhar às normais no quesito banalidade.

A personagem de Geneviève Grad em O palácio dos anjos, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1970, pouco tem a ver com o percurso dramático que comumente se verifica entre as prostitutas. A prostituição, no caso dela, foi uma mera circunstância, rito de iniciação, espécie de triagem que separa aqueles que suportam ver as coisas tais como elas são (talvez nada desnude mais o ser humano do que o sexo) dos que não conseguem. E que separa, ainda, os que meramente suportam ver a deslumbrantemente monstruosa espécie humana enfim desmascarada dos que observam a coisa com real interesse e fascínio, e que fazem questão de persistir nessa trajetória não por outro motivo senão o de se saberem firmemente instalados na realidade, e cada vez mais. Geneviève pertence a esse segundo grupo. É uma criatura incomum, invulgar. É natural, portanto, que tire algum proveito disso.

Na abertura do filme são mostrados vários quadros da pintora búlgara-brasileira Sonya Grassmann. Os quadros mostram apenas mulheres, todas retratadas como belos e lascivos animais, ninfas com olhos gigantes, cariciosas entre si. A música, para guitarra (uma guitarra meio Robby Kriegger, The Doors, em The end) e flauta (os fraseados aludem a Syrinx, de Claude Debussy), parece ter o propósito de nos hipnotizar para que entremos naquela (al)cova das leoas. Que a princípio não passa de um inocente pool de secretárias num ambiente corporativo. A trama começa a se delinear quando Geneviève e duas colegas, Adriana Prieto e Rossana Ghessa, cansam-se da vidinha de salários modestos, apartamentos divididos, humilhações, etc. Pra que essas privações todas se podem faturar alto explorando coroas endinheirados? Até aí, é o comum nesse tipo de história. Mas Geneviève logo se distingue das duas colegas. Enquanto uma vomita depois de se deitar com um cliente (e decide voltar, surtada, para o subúrbio de onde veio, onde é calorosamente acolhida por seu velho cão vira lata), Geneviève vai dobrando as apostas. O ex-chefe, Luc Merenda, enfim a vê como uma criatura da mesma espécie que ele (ambiciosa e inescrupulosa), cogitando-a como possível parceira de futuras trapaças. Geneviève não recua. Por que recuaria? O mundo, afinal de contas, tem algum limite? (Geneviève acaba encontrando um possível limite em seu encontro com Norma Bengell, mas o contorna.)

É fascinante testemunhar como as pessoas reluzem quando lhes é dada oportunidade de serem exatamente aquilo que são (nada mais reluzente do que um canalha realizado em sua canalhice, ou um santo realizado em sua santidade, ou um idiota realizado em sua idiotia, etc.). A grande ficção não é feita de poses, clichês, atenuações, fazeções de média com o que supostamente é mais conveniente. Para além da aprovação ou desaprovação de condutas específicas (nemesis fatalmente punirá hybris, podemos ficar sossegados quanto a isso), a ficção presta reverência àquilo que é real. Geneviève, ao fim e ao cabo, revela-se uma cafetina das mais reluzentes e toda sua graça reside nisso (assim como a graça do Mano Brown reside em ele ser um indiscutível e reluzente maloqueiro, por exemplo). Tido como um filme menor de Walter Hugo Khouri, O palácio dos anjos na verdade é insuspeitadamente imenso.


As Deusas (1972), por Eduardo Haak

Quis o destino que boa parte dos viventes do século XX fossem acolhidos em seus desamparos fundamentais por um ramo então experimental da medicina: a psiquiatria/psicologia. Acolhidos, sim, porque a cultura psi se expandiu para muito além de uma metodologia clínica voltada à tentativa (invariavelmente fracassada) de curar transtornos mentais, tornando-se chave explicativa para tudo – fulano tem um tique nervoso porque a garota mais bonita da escola esnobou-o quando ele tinha doze anos, sicrano não consegue progredir na vida porque inconscientemente continua subjugado por um pai tirano, beltrano escolheu a profissão de diretor de cinema porque pôde exercer através dela, de modo sublimado, suas pulsões sádicas e masoquistas, etc. A coisa foi muito além do nível individual – regimes políticos autoritários têm em sua base multidões incapacitadas para o gozo sexual, segundo Wilhelm Reich (Reich, de acordo com o Analista de Bagé, se abanque no más, tchê, é onomatopéia de cuspe). O nazismo, segundo C. G. Jung, em parte pode ser explicado por uma figura mítica – Wotan – que habita o inconsciente coletivo da Alemanha. Sigmund Freud via a interdição do incesto na raiz de nossas manifestações culturais todas. E por aí vai. Foi fatal que os conflitos humanos ficcionalmente elaborados não escapassem dessa influência: por trás de todo Hamlet, Otelo ou Rei Lear há uma psicopatologia que, se deslindada, resolverá toda problemática a respeito deles.

Malucos sempre foram alvo de interesse e curiosidade. Manicômios eram lugares de visitação pública onde os doentes exibiam seu freak show, entre o cômico e o grotesco (v. Atrocity exhibition, Joy Division). Toda cidadezinha do interior tinha seu louco de estimação. Nenhum mistério nesse interesse todo. Os portadores de distúrbios mentais normalmente são muito expressivos (expressividade fugaz, claro; nada mais monótono do que alguém em permanente desconexão com a realidade). Indo para um grau mais brando de psicopatologia, os neuróticos também podem ser interessantes. Ou no mínimo ter uma presença impactante. Penso agora no Dennis Hopper em Blue velvet. Ou na famosa entrevista que Clarice Lispector deu para a TV, meses antes de morrer. Ou no Seymour Glass e seu diálogo deliciosamente alucinado com a garotinha Sybill Carpenter em A perfect day for bananafish, de J. D. Salinger). Expressividade, presença impactante. A pergunta que isso tudo pode suscitar é: um neurótico (ou seja lá que distúrbio o infeliz tenha), apenas enquanto neurótico, acometido pelos paroxismos de seu mal, pode ter algum interesse dramático verdadeiro? Vejamos o caso de Lilian Lemmertz em As deusas, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1972.

Lemmertz vai com o marido, Mario Benvenutti (curioso que noutra vez que vi As deusas fiquei com a impressão de que a ligação entre os dois fosse meio clandestina, de amantes, etc.), passar uns dias numa casa de campo. A casa foi emprestada pela psiquiatra de Lemmertz, Kate Hansen. Hansen não convence nem um pouco no papel. Sua presença não preenche o espaço cênico ou os silêncios da personagem. Sua movimentação corporal é rígida. Sua beleza é, digamos, mais ou menos.) Lemmertz está passando por um transtorno psíquico intenso (síndrome do pânico ou transtorno de ansiedade generalizada talvez fossem diagnósticos aproximados hoje). Suas melhoras e pioras são súbitas e inexplicáveis. A psiquiatra, jovem e inexperiente, confessa que não sabe mais o que fazer naquele caso. Lemmertz pede que a psiquiatra vá ficar com ela. Hansen vai. Benvenutti se força na cama da bela (vá lá...) psiquiatra. Lemmertz a seduz. A coisa acaba num trisal. Hansen não digere bem a situação e sai fora (sai fora do caso clínico também, indicando a paciente a um colega). Lemmertz supõe-se curada. Fim.

Descontada sua grande beleza e extraordinária expressividade (a cena, logo no começo, em que ela é penetrada por Benvenutti é uma das coisas mais eróticas já mostradas no cinema), Lilian Lemmertz só diz banalidades em As deusas. Seus anseios de realização pessoal e suas considerações pessoais são francamente ingênuas, “é uma pena que precisemos de dinheiro mesmo para as coisas mais elementares”, “não vou mais trabalhar para ninguém, agora quero fazer alguma coisa criativa”, etc. Contudo, tudo soa profundo porque Lemmertz tinha aquela presença esmagadoramente densa que todo grande ator tem. Mario Benvenutti acaba sobressaindo no filme porque o que ele diz e faz tem razão e proporção. Sua decepção, enfado e desespero são plenos de realidade, “não posso nem pensar em viver sem ela”. Sua vida profissional já está sendo afetada pelos problemas psíquicos da mulher. A situação lembra a transtornada Zelda Fitzgerald drenando o marido, Francis Scott, até o ponto da aridez (“de três desertos”, v. Nelson Rodrigues), da derrocada, do crack-up. Se observarmos direito, o grande personagem do filme, com contornos de fato trágicos, é o de Benvenutti. Lemmertz é apenas a magnífica sarna que ele (infelizmente) arranjou pra se coçar.


O Último Êxtase (1973), por Eduardo Haak

Marcelo (Wilfred Khouri) é um rapaz de dezoito anos que quando criança experimentou um momento de grande felicidade e plenitude ao lado dos pais e dos irmãos ao acampar num bosque. Pouco mais de uma década depois, ele resolve revisitar o lugar. Há a esperança de que ele prove de novo a tal plenitude. Contudo, ele nada encontra ali além da natureza em seus aspectos hostis (chove o tempo todo, etc.). O tédio e a decepção imperam. Nem a namorada (Ângela Valério), com quem ele acabou de ter a primeira experiência sexual, é capaz de preencher seu vazio. O casal de amigos que completa o quarteto nada tem a oferecer – Ewerton de Castro não passa de um amigo superficial e interesseiro e Dorothée Marie Bouvyer reclama de tudo o tempo todo. Um casal de adultos, Lilian Lemmertz e Luigi Picchi, aparece com um trailer. De certa forma eles acolhem os jovens – oferecem comida (bem melhor do que as salsichas tipo Frankfurt enlatadas que eles vêm consumindo), bebida, remédios, banho quente. Picchi flerta com Bouvyer (que fica bem empolgada com o coroa aparentemente cheio da nota), Lemmertz flerta com Ewerton. Lemmertz também flerta com Wilfred Khouri, mas não demora a notar que nada pode fazer por ele. Khouri recusa-se a se integrar ao grupo, mantendo um comportamento arisco e hostil. Acaba indo embora sozinho, de carona, deitado na caçamba de um caminhão, enquanto os outros todos passeiam de barco por um lago.

Parece que foi Goethe quem inventou o gênero romance de formação, bildungsroman. Aqui e ali a ficção protagonizada por jovens deu bons resultados. É inevitável falar em J. D. Salinger. Raymond Radiguet, raro caso de talento literário precocíssimo (morreu aos vinte anos), nos legou um grande romance, Le diable au corps, obra prima da cafajestagem, por acaso juvenil. Em cinema, o mestre do gênero foi John Hughes (Ferris Bueller’s day off, Breakfast club, Sixteen candless, etc.). O último êxtase, filme de Walter Hugo Khouri de 1973, não é propriamente um filme sobre a problemática do jovem, embora tenha alguns elementos disso. Marcelo/Wilfred Khouri, após ver que não havia como voltar ao Éden infantil, faz de sua presença quase muda (e de sua cara petrificada) uma espécie de acusação permanente contra tudo que existe. Nada há a ser dito e não há ao que se integrar. Tudo que acaba sendo dito expressa – e, no limite, apenas expressa – a angústia do que não pode ser dito, o que é uma forma radical (e nada ingênua) de ironia. Wilfred, contudo, não tem propriamente consciência de que nada há a ser dito e de que não há ao que se integrar. Falta-lhe maturidade para ser irônico. Ele age como age por birra e narcisismo ferido, apenas. Todos personagens do filme, num momento ou outro, fazem a pergunta, “o que tem esse rapaz?”. Minha avó diria, “cara feia pra mim é fome”. 

Fazendo-se um razoável esforço para ignorar a centralidade que Marcelo/Wilfred tem no filme, a atenção do espectador fatalmente se voltará a Luigi Picchi, sem dúvida o personagem mais interessante da história. Homem de meia idade (cinquenta e poucos em 1973), biotipo tigrão italiano, caçador, etc., num diálogo com Wilfred diz que aos dezoito anos já estava na guerra – e que aos dezenove estava num campo de concentração. Wilfred, não sem alguma razão, questiona, “e isso serviu para alguma coisa?”. Picchi pensa um pouco e responde, “não, não serviu para nada”, “quando penso no que aconteceu parece que estou vendo um filme, que nada daquilo aconteceu comigo”, “o que interessa é que agora estou aqui, tomando esse bom uísque”. Noutra cena ele desarma Wilfred com um peteleco (e ainda o humilha ao lhe devolver a arma através da mulher, que se mostra bem feliz em agir como garotinha de recado do marido). Noutra, ainda, deixa Lemmertz brincar de seduzir os rapazes porque sabe que eles são uns bobinhos que ela mesma seria capaz de esmagar (enquanto isso ele brinca com a bela Dorothée e estamos quites). Trata-se de um homem forjado a ferro e fogo, sem o menor traço de autocomiseração, apto a dizer coisas semelhantes às que Primo Levi disse em É isto um homem. É provável que haja nisso tudo um comentário de Walter Hugo Khouri sobre aquela juventude fajuta (v. Araci de Almeida em Quem tem medo da verdade?) que dizia não acreditar em quem tinha mais de trinta anos. Os termos do confronto são datadíssimos (brotos versus coroas), mas não o confronto em si, entre maturidade e imaturidade.

Espremido entre o notável As deusas, de 1972, e o impressionante O anjo da noite, de 1974, O último êxtase é um filme de fôlego menor dentro da filmografia khouriana, filme em que ele expõe certa apoteose de uma masculinidade meio hemingwayniana (masculinidade essa, aliás, explorada em seus primeiros filmes), algo que, a bem da verdade, não tinha mesmo muito a ver com o Khouri. WHK era um homme à femmes, no que estava certíssimo. Pra que falar de homens – suas armas, suas garras, suas cicatrizes – se as mulheres são tão mais interessantes?


O Anjo da Noite (1974), por Eduardo Haak

O gênero ficcional terror padece de uma grande limitação, e digo limitação no sentido de debilidade mesmo. Explico: gênero, ou mesmo estilo, em última análise é limite – uma coisa é trágica, portanto não é cômica, etc. Contudo, nem tragédia nem comédia, a despeito de serem limitadas, padecem por isso de qualquer debilidade constitutiva – há grandes obras ficcionais nos dois gêneros, o que implica dizer que há grandes personagens trágicos e há grandes personagens cômicos. A fragilidade do gênero terror advém do fato de seus personagens serem colocados, sempre e necessariamente, na posição de vítimas de forças transpessoais (malignas, etc.) contra as quais nem a consciência nem a vontade humanas podem qualquer coisa. São personagens incapazes de ações dramáticas verdadeiras, que envolvam o risco moral da escolha (e as possíveis consequências funestas de uma escolha). Não têm como destino o exílio do trágico ou a reintegração (o desfecho de toda comédia é sempre um rito de integração) do cômico. São previsíveis cabras marcados para morrer, ou para matar ou, no mínimo, para se darem muito mal, independentemente do que façam ou deixem de fazer. O interesse que eles podem ter, portanto, é necessariamente reduzido. Deve-se, no caso de filmes, exclusivamente a caracterizações fascinantes feitas por atores de talento (Jack Torrance, Jack Nicholson em The shining, Stanley Kubrick, 1980, talvez seja um exemplo). Os únicos agentes de fato nesse gênero de histórias são as tais forças malignas (fantasmas, demônios, lugares mal-assombrados, etc.). Seu público preferencial são ou crianças ou adultos infantilizados.

Artistas de talento, contudo, podem elevar gêneros que padecem de debilidades constitutivas. Ocorre-me, agora, o exemplo (exemplo modesto, mas válido) de Um lobisomem americano em Londres, direção de John Landis, 1981. O personagem de Griffin Dunne é transformado num zumbi, num morto vivo, mas continua com a mesma personalidade (um bobalhão simpático), o que gera um efeito cômico irresistível. Isso porque um bobalhão simpático fazendo suas piadinhas bobas de sempre, mas com um corpo em avançado estado de putrefação, é um comentário irônico tanto sobre zumbis quanto sobre bobocas dados a fazer gracejos. Outro exemplo (esse imodesto) é Borges. Uma parte considerável da obra de Jorge Luis Borges é constituída de releituras irônicas da literatura fantástica. E por aí vai. Creio que Walter Hugo Khouri fez uma operação alquímica análoga a essas em O anjo da noite, de 1974, injetando uma sutil ironia no plot a influência maligna de uma casa mal-assombrada no comportamento de seus moradores

Selma Egrei, jovem estudante de psicologia, batalhadora, etc., descola um bico como cuidadora de duas crianças (de oito, dez anos, menina e menino) numa casa em Petrópolis. Os pais das crianças, Lilian Lemmertz e Fernando Amaral (que também formam um casal em O desejo), irão ao Rio e a Brasília em recepções dadas pelo governo à rainha (é presumível que seja a Elisabeth II). Egrei recebe algumas instruções de Lemmertz (dondoca ultranarcisista mergulhada numa banheira, atendendo telefonemas, etc.), é levada por uma das criadas ao quarto que irá ocupar e, por fim, é apresentada ao vigia noturno, Eliezer Gomes. As crianças, certamente carentes de afeto materno, não desgrudam de Egrei, que tem mesmo um physique du rôle apropriado a funções como baby sitter, professora de pré-primário, etc. (Egrei é uma mulher notavelmente bonita, porém nada esfuziante. Não parece capaz de despertar extremos de nenhuma espécie. Não é propriamente sensual, nem propriamente simpática, embora essas duas qualidades lhe digam respeito. Há algo de corriqueiro, de rústico, em sua presença, sem que isso chegue a resvalar para o enfadonho. É justo, portanto, dizer que ela é uma personificação meio idealizada da mulher comum. Sua qualidade dramática, notável, tem a característica de ela sempre parecer estar ao mesmo tempo em dois lugares, contraditórios e inconciliáveis – aqui, com os pés firmemente plantados no chão, e num inacessível e inapreensível universo paralelo. Isso lhe dá uma expressão sutilmente irônica, de alguém que sabe mais do que é capaz de verbalizar, ou dialética, em que a expressão facial sempre contradiz a fala, por exemplo.)

As crianças são colocadas na cama e tudo parece se encaminhar a mais uma noite como qualquer outra na região serrana fluminense. A normalidade, contudo, é quebrada quando o telefone da casa começa a tocar (tocará várias vezes, madrugada adentro). Do outro lado da linha alguém faz ruídos estranhos mesclados a ameaças de morte. O vigia noturno diz que não é para Egrei se preocupar, que esses trotes sempre acontecem, etc. Outras coisas perturbam o ambiente ali (ou são sintomas de um ambiente em si mesmo perturbado). O menino, que hoje seria diagnosticado como hiperativo, TDAH, tem dificuldade para dormir. Sai disparando sua metralhadora de brinquedo contra a Lua, pede para andar de moto, encena um tiroteio com o vigia, Eliezer Gomes, esse com um revólver de verdade. Eliezer vai subindo o tom na brincadeira (agora uma espécie de pega-pega) até o ponto em que o menino de fato fica assustado. (Egrei também se assusta e olha para os dois com uma cara de quem está começando a desconfiar que veio trabalhar numa casa de doidos.) O menino volta para a cama. Eliezer convida Egrei para um café na cozinha e lhe diz que quando começou a trabalhar à noite sentia-se mal com frequência (angústias, etc.), mas que havia se acostumado. Que não gosta daquela casa (“a casa é bonita, mas não é amiga da gente”). Etc., etc. Paro aqui a exposição da trama, limitando-me a dizer que ela chega aos paroxismos típicos do gênero suspense/terror. É o óbvio sobre o filme. Mas, como diz o título de um conto de Borges, em que ele parodia (e eleva) H. P. Lovecraft, there are more things

Selma Egrei, ao pressentir que está num ambiente ameaçador, tem dois movimentos, simultâneos e contraditórios. Algo de seu instinto de sobrevivência entra em alerta ao mesmo tempo em que ela parece excitada com a proximidade de um perigo ainda vago, inespecífico. De modo algum ela se mostra aterrorizada, antes o contrário – no fundo parece ansiar, serena e voluptuosamente, pelo encontro com esse algo, como se o sentido pleno de sua vida tivesse íntima relação com aquela entrega autossacrificial a que parece se dirigir (a última cena do filme confirma isso). O porquê desse comportamento da nossa querida Egrei só pode ser especulado. Podemos falar em típico masoquismo feminino, ou, apelando a Nelson Rodrigues, todas mulheres gostam de apanhar, menos as neuróticas? Podemos, mas isso não abrange tudo que a situação mostrada no filme expressa/sugere. Há algo de atração sexual mal-conscientizada de Egrei, a branquinha estudante de psicologia, por Eliezer, o crioulo da estiva, matuto e mal-encarado, atração destinada a se consumar em alguma forma de violação (estupro, etc.)? Isso é tão óbvio que já virou até clichê (dentre os incontáveis clichês acerca desse tipo de casal interracial, como o da mulher branca que depois de ir para a cama com o ultraviril – e sempre ultradotado – homem negro vicia-se na coisa e não consegue se acostumar com menos). Egrei seria então um ser com aspirações espirituais semelhantes às dos cristãos primitivos que se deixavam ser devorados por leões, certos que estavam sobre a salvação e a vida eterna? É bastante possível que houvesse algo disso na personagem, mas como uma camada mais funda de seu psiquismo (ou alma, palavra mais adequada a esse contexto) – ou seja, algo sem evidência o suficiente para ser um elemento determinante quanto ao desfecho da história. Essa ambiguidade toda poderia redundar num final insatisfatório, disperso, mas a simples presença de Egrei dá uma inexplicável coesão a esses elementos heterogêneos todos. (Grandes atores têm mesmo essa presença capaz de conciliar o inconciliável e explicar o inexplicável.) Eliezer Gomes a seu modo era um ator à altura de Selma Egrei. Semelhante a ela, ele parecia sempre estar ao mesmo tempo em dois planos diferentes da realidade – firmemente plantado no mundo concreto e atento a suas ameaças (era um vigia noturno, afinal de contas), e mergulhado num inferno pessoal e intransferível que ele temia ser capaz de vergá-lo para sempre (creio que isso aconteça no final do filme). Também semelhante a Egrei nesse ponto, sua simples presença já era uma forma acabada de eloquência.


O Desejo (1975), por Eduardo Haak

São Paulo, que de uma maneira ou outra sempre é celebrada nos filmes de Walter Hugo Khouri, em O desejo, de 1975, é apenas um lugar de onde é recomendável se fugir o quanto antes. Selma Egrei contempla a vista de uma cobertura na Rua Martins Fontes, na região central da cidade. Lilian Lemmertz comenta, “horrível, não?”. Egrei concorda, “muito”. Sim, ali está, à vista das duas, a São Paulo fuliginosa e ultrapoluída dos anos 1970. Lemmertz sugere de elas irem para o sítio, paisagem rural que talvez seja antípoda daquele lugar horrendo. Egrei acata a sugestão. As duas seguem viagem, a bordo de um MP Lafer (Lemmertz dirigindo o MP lembra o Autorretrato de Tamara de Lempicka num Bugatti verde). Duas? Na verdade três pessoas saem de São Paulo: Egrei, Lemmertz e o fantasma do marido desta, Marcelo (Fernando Amaral), morto há onze meses. A zona rural, contudo, em vez de ser o oposto da cidade distópica e degradada, será mais do mesmo: uma metáfora da estase, da paralisia existencial em que as duas (os três) se encontram.

Viúva há quase um ano, Lilian Lemmertz fala bastante do falecido marido. Confessa que o amava e odiava com a mesma intensidade. Aos sublimes momentos de integração carnal sempre se seguiam os de provocações recíprocas, agressões, etc. Marcelo (Fernando Amaral), era priápico e ostensivamente infiel, alcoólatra, depressivo, dissipador (vivia à custa da empresa da família, ganhando sem trabalhar), mas, para a danação da alma de Lemmertz, era o único que a esgotava, que a realizava como mulher. Selma Egrei, por sua vez, é um poço de niilismo: acabou de voltar de uma longa temporada em Paris e não sabe que rumo dar à própria vida. Não se interessa por nada. Desencantou-se com a política, “não era nada do que eu pensava”, com os relacionamentos amorosos, etc. Suas falas lembram as de Marcelo, o que não passa despercebido por Lemmertz. A diferença entre os dois é que Egrei ainda tem um certo viço proporcionado pela juventude, daí que sorria com certa facilidade (Lemmertz fala sobre a acentuada decadência física que acometeu o marido às vésperas da morte – perda de dentes, cabelos, etc.). Mas isso, o viço da juventude, como tudo o que existe, não deve durar muito.

Não deve durar muito. Uma coisa que estava no ar na São Paulo de 1975, quase tão palpável quanto as partículas de dióxido de enxofre que os paulistanos de então respiravam, era a ideia de decadência. Em 1975 São Paulo já era, à sua maneira, pós-industrial e “pós-moderna”. O ideário de progresso ilimitado do modernismo tinha dado ruim, era óbvio. Idem a discurseira de emancipação e autonomia do sujeito (Freud e companhia não curavam nem brotoeja, o proletariado não queria saber de revolução, mas de entrar forte na sociedade de consumo, etc.). A arte moderna, vista da perspectiva de sua saturação, não passava de uma coleção de cacoetes. A trilha sonora de O desejo é bastante eloquente sobre isso. Em vez de seus costumeiros pastiches de pós-serialismo, Rogério Duprat (que foi aluno de alguns figurões da música contemporânea – Pierre Boulez, etc. – em Darmstadt) incorre aqui em blocos sonoros quase estáticos, bastante próximos daquele minimalismo nova-iorquino de La Monte Young, Terry Riley, etc. Somam-se a isso coisas como a democratização do ensino superior (faculdades de fim de semana, um fenômeno típico dos anos 1970), a expansão do crédito imobiliário via BNH (e a consequente invasão de lugares antes exclusivos, como o Guarujá, por uma ruidosa e tolamente otimista classe média), a proliferação metastática de veículos automotores (“Fusca é que nem bunda, todo mundo tem”) e o cenário da típica esculhambação setentista está formado. Khouri ainda discorrerá em seu filme seguinte, Paixão e sombras, de 1977, sobre a decadência, dando voz mais uma vez ao contemplativo e depressivo Fernando Amaral. Depois disso, o enfastiado e ultrajante Roberto Maya entrará em cena com sua cara de coisa nenhuma como que dizendo, “acabou-se o que era doce, o negócio é passar essas vagabundas todas na cara, enquanto der, enquanto for possível”.

Por certo Walter Hugo Khouri não tinha consciência, ao rodar O desejo, de que testemunhava o epílogo de um modo de ser – homens e mulheres que exploram seus sentidos e sensações em busca de alguma transcendência, leitores de T. S. Eliot que contemplam o sol que se põe como um paciente anestesiado sobre a mesa, etc. Mas o filme capta perfeitamente esse momento de transição, esse às vésperas da queda. Depois disso, a toada de Marcelo, o alter ego khouriano, será fundamentalmente essa, passar essas vadias todas na cara enquanto der. Porque, ao que parece, nada lhe sobrou além disso. Daí o tom de autoparódia que muitos críticos veem na produção khouriana a partir dos anos 1980. Porque de fato há nesses filmes a paródia sinistra da criatura que perdeu a razão de ser, mas que, por não saber fazer outra coisa, continua incorrendo nos mesmos gestos – pulsões que se transformaram em compulsões (e  que, cada vez mais, degeneram em repulsões). A melhor expressão desse Marcelo avacalhado, decaído, talvez esteja em Convite ao prazer, de 1980. Ao mesmo tempo em que ele submete o amigo de infância Luciano (Serafim Gonzalez) a gozações sádicas e sinistras (disfarçadas de convites ao prazer), ele faz comentários irônicos sobre valores antes cultivados a sério e que na ocasião, se tanto, sobreviviam como paródia (ioga kundalini, quadros, livros, etc.). Depois de Roberto Maya, os Marcelos não passarão de caricaturas com cada vez menos consciência de que não passam de caricaturas (o yuppie predador e inexpugnável de Tarcísio Meira em Eu, de 1986, é a melhor dessas caricaturas, porque divertida em sua cafajestagem e canastrice; a pior é a de Ben Gazzara em Forever, de 1991). 

(Os anos 1980 foram divertidos enquanto prevaleceu a ideia de que o ser humano tinha caído num ridículo sem precedentes e que nada mais deveria ser levado a sério. Enquanto o holocausto nuclear não viesse, o negócio era ver O povo na TV e se esborrachar de rir com o primitivismo e a escrotice dos pobres. Ou ver o Festa baile e se esborrachar de rir com o espetáculo grotesco daqueles velhos bailando no salão do Clube Piratininga. Ou ver o Homem do Sapato Branco esbofeteando a cara de uma fulana presa em flagrante por roubo. Ou ver as empregadinhas tendo crises histéricas, desmaiando, etc., na plateia do Chacrinha. Ou ver o Goulart de Andrade mostrando os travecos injetando silicone industrial e – por que não? – rachar o bico com o negócio. Ou ver o Sid Vicious com uma camiseta nazista enfiando uma torta na cara de uma piranha de rua em Paris. As coisas começaram a perder a graça quando se decidiu que já era hora de restaurar a dignidade humana, fosse na base que fosse. Ou não?)

Voltando a falar especificamente de O desejo, creio ser justo afirmar que se trata do mais rarefeito dentre os grandes filmes de Khouri, sobretudo por causa de seu final, falho a meu ver – falho porque a ficção (filmes, livros, etc.) deve resolver seus conflitos dentro das leis que lhes são próprias, sem apelar a chaves explicativas outras (psicanalíticas, filosóficas, religiosas, políticas, etc.). O denouement de O desejo, obscuro, provavelmente simbólico, coloca o espectador naquela coisa de “o que será que o diretor quis dizer com isso?”. A indeterminação e a obscuridade abre a coisa a uma possível chave explicativa alheia ao universo ficcional, possivelmente psicanalítica (talvez sim, talvez não). A impressão que fica é de que a história não fechou, que a energia acumulada durante todo seu percurso dramático não chegou a nada ou se dispersou numa inútil e trabalhosa elucubração acerca de o que o diretor quis dizer. A cena – cena final –, de qualquer forma, é coesa e impressionante (Khouri era, afinal, um grande diretor), lembrando um daqueles pesadelos cujo sentido nos escapa, mas que nos cativam por sua expressividade terrificante.

Descontada essa falha do final, O desejo é um filme envolvente sobretudo porque nos interessa saber aonde a inquietação de seus personagens os levará. Porque, a despeito da banalidade acachapante em que estamos afogados hoje e a despeito dos papeis ultrajantes que o destino acabou por nos reservar, a despeito disso tudo nossas inquietações são as mesmas de Lilian Lemmertz, Selma Egrei e Fernando Amaral (por que nossas euforias sempre acabam em tédio, nossos desejos em indiferença, etc.). Sim, sabemos que a inquietação dos personagens de O desejo os leva a um lugar ignorado e não sabido e que provavelmente nossas inquietações nos levariam a esse mesmo e decepcionante lugar. Sim, talvez. Talvez tudo seja mesmo uma simples questão de aumentar os níveis de serotonina nas fendas sinápticas, através de um inibidor seletivo de recaptação, e, puf, adeus tédio, adeus angústia. (Sinceramente, acho a chave explicativa psiquiátrica ainda pior do que a psicanalítica. Como dizia o Millôr Fernandes, “ao psicanalista eu não vou nem amarrado, ao psiquiatra só vou amarrado”.) Creio que ver O desejo, hoje, serve para restaurar uma relativa plenitude do real que não teria como ser restaurada de outra forma (tenho falado muito sobre isso. Esse me parece mesmo ser o sentido último, teleológico, da arte ficcional). A vida tem um potencial de significado e beleza do qual é bom nos lembrarmos às vezes. E é bom simplesmente porque é bom ver a realidade não apartada de um de seus importantes aspectos (senão o mais importante). E é bom ver também as falhas, as contradições, o potencial de desagregação e caos que sempre nos assedia e ameaça. Assim é a vida, assim somos nós.


Paixão e Sombras (1977), por Eduardo Haak

Grandes narrativas ficcionais (e o cinema, a despeito de suas pretensões de autonomia, linguagem cinematográfica, não passa de um tipo de narrativa ficcional) são aquelas que tratam de questões humanas fundamentais. Grandes personagens são os que vivenciam e expressam, de forma dramática, essas questões. Isto posto, Paixão e sombras, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1977, é forte candidato a seu pior trabalho. Marcelo (Fernando Amaral) está num decadente estúdio de cinema (em vias de ser transformado num hipermercado), esperando a atriz, Lena (Lilian Lemmertz), com quem pretende fazer um filme. A atriz não aparece e, enquanto Marcelo fica esperando Godot, entretém-se discutindo cinema com sua assistente, Ana (Monique Lafond). Marcelo está visivelmente depauperado e deprimido, mas isso isoladamente não significa drama, de forma alguma. Paralelamente, o drama do estúdio que deve ser desativado em breve e da atriz (musa, etc.) que aparentemente deu o bolo no diretor (porque trocou o cinema pela televisão) só são dramas num sentido muito abstrato. A verdade é que histórias protagonizadas por artistas às voltas com seu métier quase nunca dão em coisa que preste. No caso de Paixão e sombras, a coisa soa como uma paródia mal conscientizada de um hipotético deus que lamentasse o universo por ele criado. A comparação faz sentido, afinal artistas são deuses à sua maneira e suas obras podem ser chamadas de universos. Quixotesco, mas qualquer pessoa que já tenha lidado com algum artista (ou candidato a) sabe que as coisas são assim. O bom é que a realidade costuma botar os Don Quixotes em seus devidos lugares com a ajuda do Sancho Pança que mais estiver à mão. E é justamente um Sancho Pança que salva Paixão e sombras de ser um fiasco total.

Buda (Carlos Bucka) é marceneiro, contra-regra, etc., no tal estúdio cinematográfico. Obeso mórbido (na terminologia atual), suarento, etc., aqui e ali chama Marcelo Quixote à realidade, “seus filmes são muito parados e não têm mulher gostosa”. Bucka foi o inolvidável Caveirinha em Elas são do baralho, Sílvio de Abreu, 1977, e o inesquecível gerente do hotel de alta rotatividade (além de intrujão, artigo 180) de Noite do desejo, Fauzi Mansur, 1973. Monique Lafond, que tem em relação a Bucka a complacência gentil e calorosa que certas beldades têm em relação a homens desajeitados, descobre que o marceneiro tem lá seus talentos artísticos. Ele desenha bem, faz umas ilustrações interessantes, quase todas de temática sadomasoquista. Marcelo e a assistente fazem um ensaio com a câmera usando Bucka como ator. Dizem que o perfil dele lembra um pouco o de Orson Welles. Até cogitam fazer um filme com ele. Mas Bucka rói a corda, diz que a mulher dele não vai gostar dessa coisa de ele virar ator, etc.

Walter Hugo Khouri, a despeito de sua grandeza, não tinha quase nenhum pendor para o cômico. Sua únicas quase comédias talvez sejam Convite ao prazer, fundamentalmente pela presença do patético doutor Luciano (Serafim Gonzalez), e Paixão e sombras enquanto o filme se detém em Carlos Bucka. No caso de Paixão e sombras a comédia tem um leve toque de slapstick, porque a presença de Bucka dá margem a isso. Contudo, pressentimos que o inolvidável Caveirinha era um ator que tinha mais a oferecer do que aqueles meros efeitos cômicos banais que se baseiam exclusivamente na exibição de obesidade (ele tentando entrar, com incrível dificuldade, num Fusca em Elas são do baralho, etc.). A presença dele oxigena Paixão e sombras quando a rarefação de Marcelo e seus supostos tormentos deixa a coisa quase irrespirável. Khouri sem dúvida percebeu isso, daí o destaque momentâneo que deu ao personagem.

É razoável dizer que Carlos Bucka teve um destino análogo ao de Victor Buono, um excepcional ator com formação shakesperiana, mas que pela implacabilidade do physique du rolê (obesidade) só interpretava tipos freaks como o rei Tut do seriado de TV Batman & Robin. Ainda que não tenha ido muito além como ator, o aquém que coube a Bucka de certa forma bastou para que, passados quase quarenta anos de sua morte, ainda nos rendamos a suas memoráveis atuações.


As Filhas do Fogo (1978), por Eduardo Haak

Uma parte pouco lembrada pelos comentadores de Totem e tabu, de Sigmund Freud, é aquela em que o autor discorre sobre o suposto ressentimento que os mortos nutrem pelos vivos. Freud colheu muitos exemplos dessa crença, que está na base do pavor que a humanidade sempre teve de fantasmas – sendo o fantasma (espírito, ectoplasma, etc.) um ressentido, por ver-se privado de capacidades que, se presume, apenas os vivos têm, sua atitude para com os vivos será sempre e necessariamente a do invejoso, do rancoroso reivindicador. A teoria do húngaro Szondi Lipót sobre a pretensão de nossos antepassados pesando maciça e negativamente sobre nossos destinos vem ao encontro disso que Freud falou. Jung afirma coisas análogas em Septem sermones ad mortuos, que os mortos sempre voltam de Jerusalém (e batem à nossa porta, desacorçoados) porque não encontraram por lá aquilo que procuravam. Pensei nessas coisas ao rever As filhas do fogo, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1978. Deixando de lado a discussão sobre o que realmente acontece ou o que deixa de acontecer no filme (acontecimentos psíquicos não têm como não ter essa ambiguidade, de serem existentes e inexistentes ao mesmo tempo), o fato realmente garantido é que a personagem Diana (Paola Morra) termina a história esmagada por sua ancestralidade. A floresta de cipós em que ela se vê presa no final provavelmente é a mesma que seu avô desbastou, ali na propriedade, plantando no lugar aprazíveis jardins. Há em sua ancestralidade uma mãe homossexual e suicida (Sílvia, Selma Egrei), uma irmã que morreu jovem e louca, um pai ausente (sobre quem nada sabemos exceto que cultivava hábitos bizarros, como o de atirar em árvores com uma velha pistola Mauser da Primeira Guerra). O avô, o tal que desbastou a floresta cheia de cipós, também cometeu suicídio, ao que parece. 

Diana voltou recentemente à propriedade da família, situada na serra gaúcha. É provável que desejasse, com esse regresso, jogar alguma luz na própria história, história essa cheia de pontos obscuros. Sua namorada, Ana (Rosina Malbouisson), participa da investigação mais como observadora (e sensitiva, digamos assim). Mariana (Maria Rosa), criada da casa, sabe bem mais do que a princípio dá a entender. Como quem não quer nada, afetando ares de criatura simplória, age como sólida guardiã de um limiar que não sabemos exatamente qual seja. Ela sabe que a curiosidade de Diana, por quem é bastante afeiçoada, pode levá-la a situações perigosas. Percebemos que ela joga do lado luminoso da força, embora não entendamos exatamente como e por quê. Do lado escuro (da força) está Dagmar (Karin Rodrigues), discreta megera que atualmente se dedica a gravar vozes de pessoas mortas e que foi amante de Sílvia (Selma Egrei), a mãe suicida de Diana. Também do lado escuro está o vagabundo errante interpretado pelo Serafim Gonzalez (que depois de morrer afogado num lago próximo à propriedade, isso depois de impor sua presença insidiosa à Ana, Diana e Mariana, reaparece como mestre de cerimônia do rito do solstício de verão que acontece ali, na serra gaúcha – na verdade o rito já não acontece há mais de dez anos, embora continue a acontecer).

A curiosidade frívola e juvenil de Diana por certo não merecia ser punida com um castigo tão severo, esse de ela acabar sendo arruinada pelos rancores vingativos de seus antepassados, rancores esses que sempre pesam sobre nossos destinos (Szondi). Talvez Diana não tivesse como escapar a essa fatalidade, a esse destino compulsório, sendo membro de um clã de criaturas marcadas pela tragédia. Talvez Mariana não pudesse mesmo protegê-la de coisa alguma e, no final das contas, agiu como agiu apenas para conservar intacta a fronteira entre luz e trevas (o final do filme parece sugerir isso). De qualquer forma, nos compadecemos do destino de Diana. Torcíamos para que ela vencesse as assombrações todas, jogasse luz nas coisas, tornasse claro o que antes era indeslindável, como seu avô, que construiu uma clareira no que antes era uma mata cerrada, ameaçadora, cheia de cipós (mas que, ao que parece, no final também não conseguiu vencer as escuridões todas). O impulso de conhecer é nobre e natural ao ser humano, mas nem sempre o protagonista do ato de conhecer leva a melhor (aliás, é mais do que frequente que leve a pior – Édipo que o diga).

Apesar de uma falha ou outra – Diana, sendo uma personagem tão central, mereceria uma atriz melhor do que a sofrível Paola Morra –, As filhas do fogo é um filme espantoso, coeso, implacável, sem dúvida um dos melhores realizados por Walter Hugo Khouri. Para além de sua superfície de filme de terror, há ali um tipo de narrativa semelhante ao das peças míticas de Nelson Rodrigues (Senhora dos afogados, com o tema da pessoa morta – e ressentida – que retorna, talvez seja a que mais se assemelhe). Ambos – Khouri e Nelson Rodrigues – não só eram hommes à femmes, mas entendiam mesmo desse riscado, o universo feminino. (Talvez universo seja uma palavra modesta, acanhada demais para tentar abranger o feminino. Servimo-nos dela apenas pela inexistência de outra.)


Prisioneiro do Sexo (1979), por Eduardo Haak

Em Prisioneiro do sexo, filme dirigido por Walter Hugo Khouri em 1979, temos a primeira aparição do ator Roberto Maya no papel de Marcelo, o personagem mais constante de Khouri (além das Anas e das Berenices). Marcelo costuma ser chamado, talvez propriamente, de alter ego do diretor. Roberto Maya foi o ator que mais bem o realizou. 

Paulo José foi o Marcelo em As amorosas, de 1968, e deu uma interessante encarnação ao personagem, simpática, fresca, juvenil. Mas o ar perplexo e meio apatetado (de bobo da corte) de Paulo não tinha muito a ver com o clima, a ambiência, o pathos tipicamente khouriano. Wilfred Khouri foi o Marcelo em O último êxtase, de 1973 – um Marcelo também juvenil, porém arredio, birrento, irritadiço. Fernando Amaral foi o Marcelo em dois filmes, O desejo, de 1975, e Paixão e sombras, de 1977 – um Marcelo depauperado e deprimido demais. Tarcísio Meira foi o Marcelo em Eu, de 1986 – Meira era uma grande presença e fez do personagem um divertido cafajeste dionisíaco, mas nada muito além disso. Ben Gazzara foi o Marcelo em Forever, de 1991 – um saco de vento, uma caricatura num filme, no mais, caricatural. Por fim, Antônio Fagundes foi o Marcelo em Paixão perdida, de 1999 – um Marcelo inteiriço demais, oposto absoluto ao filho catatônico, também Marcelo, interpretado magnificamente pelo garoto Fausto Carmona. 

Há bons e excelentes atores khourianos – Mario Benvenutti, Pedro Paulo Hatheyer, Luigi Picchi, etc. –, mas nenhum imprescindível nos filmes em que trabalharam, exceto Roberto Maya em Prisioneiro etc., Convite ao prazer, 1980, e Eros, o deus do amor, 1981. Nesses filmes Maya personifica magistralmente o vilão, aquele tipo que apela a nosso lado escuro, brutal, não empático. “Se ninguém estivesse vendo, se a polícia não tivesse como pôr as mãos em mim, eu não faria exatamente as mesmas coisas que esse crápula faz?”, é a pergunta que um grande vilão planta em nossa alma. Em última instância ele acena com o se Deus não existe tudo é permitido dostoievskiano, joga nesse limite. Ecoa a serpente nos persuadindo de que se comermos da árvore do conhecimento do bem e do mal seremos como Deus – ou seja, teremos a liberdade perfeita. Para que seu apelo tenha efetividade, ressoe em nosso próprio lado escuro, a personificação exige sutileza e, sobretudo, uma complexa composição de luzes e sombras. Um mau vilão – grotesco, ordinário, unidimensional, etc. – seria facilmente refutado e rejeitado por nossa consciência. Roberto Maya é chiaroscuro e nisso está seu poder de persuasão.

Há nos vilões de Maya um forte componente aristocrático. Tudo nele nos informa – talvez, sobretudo, o que percebemos subliminarmente – que ele não é um qualquer, que é uma pessoa bem educada, que estudou no Colégio Marista Arquidiocesano nos anos 1940, etc. Seu jeito de falar, sem cerimônia, predominantemente coloquial culto, irônico, quase insultuoso, é tremendamente aristocrático. Como dizia o Paulo Francis, aristocratas não eufemizam quando falam (fala pernóstica é coisa de gentinha que quer dar uma de sofisticada). Além de não eufemizar nada, Maya também não se explica nem se justifica (“Boldness has genius, power and magic in it. Never contradict. Never explain. Never apologise”). 

Ao mesmo tempo em que não é um qualquer, Maya é insultuoso até a raiz. Seus bons modos estão mesclados a péssimos modos. Numa das primeiras cenas de Prisioneiro do sexo, ele desdenhosamente chuta um balde de leite para anunciar sua chegada ao caseiro da chácara onde mora. Noutro momento, no escritório, despe à força uma secretária e mergulha o rosto em suas partes íntimas. Noutro, durante uma orgia, despeja um balde de gelo dentro da calcinha de uma fulana lá. E por aí vai. Comentaristas ingênuos de Walter Hugo Khouri costumar usar o clichê crise existencial para explicar a motivação de seus personagens. Na verdade os personagens khourianos mais representativos são aqueles que, autorizados pela própria ousadia, vão pondo à prova tudo que existe e constatando a falta de integridade de tudo. Durante o percurso, experimentam alguma volúpia e alguma excitação nesse desmascaramento cruel das coisas. Em O prisioneiro do sexo isso aparece de maneira mais aguda do que em qualquer outro filme de WHK.

Marcelo, dono de uma empresa de engenharia cheia de contratos com o governo, etc., propõe à mulher, Ana (Sandra Bréa), que eles vivam sob o mesmo teto com uma de suas amantes. Passado o choque inicial, a situação logo se acomoda. As duas mais se entendem do que deixam de se entender. Talvez para desafiar a nova paz-pasmaceira doméstica, Marcelo espreita e quase estupra uma amiga que frequenta a casa, Kate Lyra, uma boboca metida a sex lib. Depois, supõe-se dominado por um irrefreável desejo sexual pela própria filha, Berenice (Nicole Puzzi). Como nada nesse mundo tem mesmo, aparentemente, qualquer integridade ou limite, Berenice parece corresponder aos desejos incestuosos do pai. A história termina nesse ponto, mas sabemos que Marcelo não cessará suas condutas demolidoras, ao menos até que encontre (se é que vai encontrar) um motivo cabal para o fazer. Deus, com sua ausência presente, com seus símbolos indeslindáveis (a árvore ascensional que Gabriele Tinti contempla no final de Noite vazia) e com sua estranha insistência em preservar a liberdade humana (uma mixórdia que, no mais das vezes, nos traz mais problemas do que qualquer outra coisa), é a última instância com que todo grande canalha, todo grande blasfemador tenta, no fundo, dialogar. Marcelo talvez não faça outra coisa além de tentar arrancar respostas dessa última instância, por meio do ultraje e do insulto.

Prisioneiro do sexo, dos três filmes de Roberto Maya, é o mais rudimentar, às vezes parecendo um rascunho tosco daquilo que Khouri realizou com grande brilho e nitidez em seu filme seguinte, Convite ao prazer. Mas até por ser tosco, por usar do mau gosto declarado em sua feitura (e por ser conduzido por um grande vilão), o filme impacta o espectador não só por sua discursividade dramática, mas também pelas vísceras. O repulsivo, quando operado por um grande artista, expressa uma tensão moral que não teria como ser atingida de outra forma. Ainda que sintamos, aqui e ali, certa falta do Walter Hugo Khouri esteta e certa falta do joie du vivre khouriano em Prisioneiro etc., não temos dúvida de que ele realizou, ali, um filme único por sua explicitude e agudeza.


Convite ao Prazer (1980), por Eduardo Haak

Há pelo menos quatro personagens que, num momento ou outro, protagonizam Convite ao prazer, filme de Walter Hugo Khouri de 1980. Além de Marcelo (Roberto Maya), o protagonista óbvio, vemos o centro de interesse dramático pender bastante para Luciano, um dentista remediado interpretado magistralmente por Serafim Gonzalez. Anita (Helena Ramos), a mulher suburbana de Luciano, extremamente ciosa sobre aquilo tudo que supostamente lhe pertence, também tem momentos de grande centralidade no filme. Por fim, dona Eugênia (Linda Gay), mãe de Marcelo, comentadora desalentada dos descaminhos comuns da espécie humana (sempre os mesmos, pois, como bem sabemos, não há nada de novo sob o sol, etc.). Sua cena, única, é cheia de graça e vivacidade, sendo a expressão de Linda alguma coisa entre irônica, furibunda e explicitamente cômica (fica sempre muito engraçado alguém dizer sem atenuações aquilo que as coisas realmente são). Sua fala principal, aliás, não deixa de ser um comentário irônico sobre o próprio Walter Hugo Khouri e o suposto tormento existencial de seus personagens mais típicos, “que existencial coisa nenhuma, não me venha com essas coisas, isso é sem-vergonhice, malandragem de homem, eles querem é pegar essas vagabundas todas”.

Talvez seja próprio dizer que dos quatro protagonistas o que mais rouba a cena é Luciano. Seu pathos tem mais urgência e sofreguidão do que os dos outros. A despeito disso, Luciano é uma criatura irredimível por ser um compêndio de falta de virtudes – é medroso (come na mão da mulher, uma viborazinha de túmulo de faraó), invejoso, recalcado e, sobretudo, burro. Lembra bastante Polônio, o personagem de Hamlet, William Shakespeare. (Só ri quando o chefe ri, etc.) Lembra também alguns daqueles nossos vizinhos de prédio, fofoqueiros e maledicentes, “fulano vive atrasando o condomínio e compra carro zero todo ano”, etc. Sua intensa admiração invejosa por Marcelo vem de décadas (ambos são amigos desde o tempo da escola). Ele tenta ser, com seus parcos recursos, um Marcelo, mas por não possuir as potências todas do velho amigo-inimigo (muito dinheiro e as acomodações todas que o dinheiro proporciona, uma vitalidade talvez oriunda da prática da ioga kundalini, expertise e traquejo social, etc.), Luciano acaba não passando de um Marcelo falhado. É tragicamente engraçado por isso (e também por Serafim Gonzalez ser um ator de viés fortemente cômico).

A história transcorre a partir de um encontro quase fortuito entre Marcelo e Luciano. Marcelo tem um problema num dente e vai para o consultório de Luciano, já num horário off duty. Luciano demora para atender a porta, pois está abatendo uma lebre (v. Carlos Imperial) em sua cadeira de trabalho (a lebre é a Aldine Muller no esplendor de seus vinte e seis anos). Dente consertado (e a lebre abatida também por Marcelo), os dois velhos amigos saem para beber e colocar os papos em dia. Fazia quatro anos desde o último encontro entre ambos. Marcelo diz que se casou de novo. Luciano pergunta, “e como é sua nova mulher?”. Marcelo diz, cheio de nonchalance, afrouxando a gravata, “melhor do que a outra”. Luciano, “mas dessa agora você gosta, né?”. Marcelo, “gosto muito... detesto muito...”. O encontro se encerra com um convite de Marcelo para que Luciano vá na tarde seguinte a uma cobertura que ele tem para encontros com mulheres (para quem tem curiosidade sobre locações, o prédio, onde foram feitas algumas cenas externas, fica na Alameda Ministro Rocha Azevedo, 1357).

Qual interesse pode ter Marcelo em privar da companhia de um amigo que sabe ser um invejoso, um compêndio de falta de virtudes? Sabemos, através de um diálogo de Marcelo com sua mulher, Ana (Sandra Breá), que ele tem pavor de que mexam na sua boca, mas que tratar os dentes com Luciano, ainda que ele suspeite que o amigo não seja um dentista muito capaz, faz a coisa parecer uma brincadeira. É essa a única dependência conscientizada de Marcelo em relação ao velho amigo, embora talvez haja outras. Indo ao ponto que me parece fundamental, Marcelo cumpre em relação a Luciano uma lei não escrita da narratologia (e, também, uma lei não escrita da vida), mas que é encontrada em toda obra ficcional realmente grande – se um idiota é colocado em cena, deve ser punido com rigor (um corolário dessa afirmação é que o que constitui a ficção medíocre, na quase totalidade dos casos, é a complacência com o personagem tolo, inepto). Marcelo não faz outra coisa com Luciano além de dar corda para que ele se enforque. Sabe que o amigo, excitado com o mulheril e com uns uísques a mais na cuca, vai render um espetáculo grotesco e, quiçá, muito engraçado. (O que de fato ocorre.) Parece mesquinho alguém se divertir explorando o ridículo e as fraquezas de um semelhante, mas há mesmo algo de justiça cósmica no empreendimento. Shakespeare pune o palerma do Polônio fazendo Hamlet atravessá-lo com uma espada. Gustave Flaubert pune o cretino do Charles Bovary fazendo Emma plantar-lhe monumentais chifres na testa. As mulheres de Nelson Rodrigues traem os mentecaptos de seus maridos alegando eles que eles suam nas mãos e usam camisetas de times de futebol. E por aí vai. Luciano, por ser medroso e invejoso, por tentar agir como alguém que ele não pode ser, por ter uma autoconsciência limitada e, sobretudo, entorpecida, merece plenamente o relho que leva no lombo.

Convite ao prazer é, dos filmes de Khouri, o que tem os personagens mais plenamente realizados. O enredamento entre eles é esplêndido. Todos agem de acordo com razões pessoais mais do que legítimas, mas sabem que, para além disso, há a estrutura da realidade pesando sobre todos, daí que ninguém opte por nenhum tipo de enclausuramento narcísico (que maravilha que o doutor Luciano queime tudo até a última ponta como o imbecil que ele é; lembro-me do Nelson Rodrigues dizendo que o ator Jorge Dória era um ser varado de luz, como um santo de vitral quando era um péssimo ator; e que, ao tornar-se um bom ator, via aprendizado, disciplina, autoconsciência, etc., ele perdeu toda graça e luminescência que possuía). Voltando ao narcisismo, até Marcelo, que declaradamente se interessa apenas por si e suas obsessões, de acordo com a narração em off da abertura de Eros, o deus do amor, em Convite experimenta esse peso limitador do real, já que esse é o filme em que o propalado alter ego de Khouri é mais desafiado, tanto pela consciência de que as situações de gozo de que ele pode usufruir no fundo são bem modestas quanto pelos questionamentos quase diretos que lhe são dirigidos, “que existencial que nada, eles querem é pegar essas vagabundas todas”, ou mesmo questionamentos diretos, como quando, no final, o medíocre Luciano enfim demonstra ter algum tutano sob camadas e camadas de covardia e desfere uma sequência de bofetadas no amigo-inimigo. Embora não pareça à primeira vista, Convite ao prazer é o melhor filme de Walter Hugo Khouri, por ser o mais maduro, o mais justo e proporcionado, o que mais presta mais contas ao real (e, na minha opinião, o mais prazeroso de se ver).


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